Formas e funções caminham juntas. Essa relação íntima vale para objetos do cotidiano e também para a biologia. Visualizar a forma ajuda a compreender a função de moléculas e estruturas complexas. Isso é possível com auxílio de computadores semelhantes aos usados em projetos arquitetônicos, mas sentir a forma por meio de maquetes e esculturas acrescenta uma experiência sensorial extra que amplia a compreensão sobre o objeto estudado. Nesse contexto, a arte milenar do origami também é uma ferramenta poderosa.
Trabalho na área de estrutura e função de proteína há três décadas, desde os tempos de graduação até hoje, como professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Meus temas de interesse em pesquisa incluem doenças metabólicas e degenerativas. Mas uma experiência pessoal me levou a explorar a relação entre estruturas de moléculas, arte e ensino: minha paixão pelo origami.
Quando comecei a estudar química, não tinha recursos para comprar modelos de moléculas. Improvisava no quintal de casa: dobrava arames e cortava canudos para montar estruturas tridimensionais de moléculas. Assim, percebi como a visualização em 3D é essencial para aprender ciência. Anos depois, comecei a trabalhar com elucidação estrutural de proteínas, e a combinação dessas habilidades em arte e ciência se transformou em pesquisa. Em um de meus trabalhos mais recentes, desenvolvi um modelo de origami para representar o dobramento das proteínas amiloides.
Da bancada ao papel dobrado
Modelos visuais foram essenciais em muitas grandes descobertas. Foi assim na compreensão da estrutura do DNA e também na elucidação de proteínas de formato globular, como a hemoglobina do sangue. Essas contribuições renderam o Prêmio Nobel de Medicina a Watson, Crick e Wilkins, e o de Química a Perutz e Kendrew, em 1962. Décadas depois, em 2024, o avanço das ferramentas de Inteligência Artificial na previsão de estruturas de proteínas globulares rendeu novo Nobel de Química a três pesquisadores.
A ciência precisa da arte para se comunicar, seja com outros cientistas ou com o público em geral. As proteínas, inclusive as que compõem nossos corpos, têm sua função determinada intimamente pela forma como se dobram. O entendimento dessas estruturas depende da representação por modelos. No entanto, muita gente encontra dificuldade em imaginar moléculas biológicas em três dimensões.
Além das imagens estáticas em livros, a ciência conta com modelos físicos e até modernas representações digitais em 3D. Ferramentas computacionais precisas e gratuitas, como ChimeraX, além de kits didáticos e modelos impressos em 3D, são amplamente usados no ensino e na pesquisa. Ainda assim, moléculas grandes e complexas nem sempre são fáceis de representar e compreender.
A busca por recursos didáticos simples, mas ao mesmo tempo precisos, acessíveis e de baixo custo é constante. Materiais que possam ser moldados sem grande complexidade — como dobrar uma folha de papel — já ajudam a visualizar como cadeias complexas se organizam e se sustentam no organismo. Nesse caminho, encontrei como grande aliado o papel e algumas dobras.
O dobramento peculiar do amiloide
As proteínas são peças fundamentais da vida, mas também podem causar danos. Em doenças como Alzheimer, Parkinson, Diabetes tipo 2 e as encefalopatias priônicas (como a da vaca louca), certas proteínas assumem um padrão de forma chamado amiloide, que se acumula nos tecidos e está associado a processos degenerativos.
Essas estruturas são particularmente interessantes. Elas têm em comum a organização em fibras muito longas e estáveis, num padrão repetitivo. Muitos pesquisadores as descrevem como “dobramentos errados” (misfolded). Essa denominação faz sentido do ponto de vista médico, já que estão associadas a doenças – ou seja, se o saudável for usado como referência, é algo que está errado. Mas, para a química e física, tratam-se de dobramentos altamente organizados. A organização é tão precisa, que é possível determinar sua estrutura em nível atômico.
Hoje, já conhecemos centenas de estruturas amiloides e sabemos que dezenas de doenças estão ligadas a elas. Mesmo assim, compreender e ensinar sobre a estrutura é um desafio para muitos. Afinal, a lógica desse dobramento parece muito complexa. São justamente essas características dos amiloides que atraem minha atenção como cientista — e também como origamista.
Como funciona o modelo amiloide em origami
Para tornar a compreensão da forma amiloide mais acessível, criei modelos em papel com passo a passo, que podem ser impressos e usados para se construir as formas. Esse material está disponível para ser baixado livremente. Cada folha de papel representa uma forma típica de proteínas denominada folha beta (β), composta de fitas paralelas de proteínas – como um tecido.
O papel é dobrado com os vincos perpendiculares às fitas de proteínas. As dobras, feitas em pontos específicos e espaçados regularmente, são marcadas com as letras R (de radicais, ou cadeias laterais). Os vincos retos, que conectam as letras R, alternam entre o padrão “vale” (linha pontilhada) e “montanha” (linha contínua). Esse arranjo segue a convenção usual de origami, formando um padrão em “W” (vale-montanha-vale) e resultando em uma sanfona.
E assim a primeira etapa está pronta. Esse padrão de sanfona corresponde ao dobramento usual de amiloide. Agora, quando a folha em sanfona é curvada, ou quando duas delas são aproximadas lado a lado, os relevos das dobras (os grupos R) se encaixam alternadamente, como um zíper de roupa. Essa representação de encaixe mostra como as interações laterais conferem enorme estabilidade às fibras amiloides.
Um papel com 16 dobras representa um pequeno peptídeo de 16 aminoácidos. É possível produzir modelos com mais dobras que representam proteínas mais compridas, usar diferentes tamanhos de papel, ou unir várias folhas dobradas. Para se ter uma ideia de proporção: representar algumas das fibras mais extensas exigiria cerca de 250 folhas A4 unidas pelas laterais, formando uma estrutura de aproximadamente 52 metros de comprimento.
O mesmo modelo em leque pode ser curvado em diferentes padrões, ilustrando a diversidade estrutural encontrada nas mais diversas fibras amiloides. Durante atividades educacionais, vários modelos podem ser unidos com fita adesiva, criando uma experiência coletiva de aprendizado. Com várias folhas dobradas simulando longas fibras maduras, é possível visualizar como pequenos conjuntos de poucas cadeias (oligômeros, representados por cada folha individual) se organizam para formar fibras extensas.
Um recurso didático e artístico
Estamos sempre em busca de modelos que expressem o que desejamos comunicar. É assim com estátuas, desenhos, modelos virtuais computacionais – e também com origami.
Todo modelo é apenas uma representação, e não o objeto real, e portanto tem suas limitações. A proposta do modelo em papel, dobrável, acessível e interativo, é comunicar a lógica das fibras amiloides. Atualmente, já estão disponíveis técnicas avançadas de elevada resolução, como criomicroscopia eletrônica (cryoEM) e a ressonância magnética nuclear (NMR), que permitem elucidar essas estruturas em nível atômico. Mas a beleza dos modelos simples está na comunicação acessível, uma ponte entre ciência e sociedade.
O modelo de amiloide em origami é simples, barato, acessível e rigoroso na informação. Pode ser usado em ensino médio, graduação, pós-graduação, workshops e outros espaços. Com papel comum de escritório, impresso ou até mesmo desenhado à mão, estudantes podem manipular, dobrar e montar estruturas que antes só viam passivamente em livros e vídeos. Assim, espero avançar na compreensão da plasticidade da forma de proteína, com o conhecimento na palma da mão.
Esse trabalho, apoiado pelo INCT de Biologia Estrutural e Bioimagem (por meio de edital do CNPq e da FAPERJ), reforça como forma e função estão intimamente relacionadas. O origami ajuda a revelar a dinâmica das proteínas, suas restrições, a lógica geométrica e as bases químicas que sustentam tantos processos biológicos. Trata-se de um modelo simples, mas que evoca a profunda ordem da matéria biológica — onde arte e ciência convergem.