Quando a maioria das pessoas pensa em peixes, geralmente se lembra de um prato saboroso na mesa ou uma pescaria com os amigos. Mas o papel dos peixes na natureza vai muito além do que se imagina.
Peixes de água doce provêm muito mais do que alimento. Por exemplo, a economia do município de Barcelos, no Amazonas, é movida pelo comércio de peixes ornamentais. Princípios ativos de drogas foram descobertos no ferrão de arraias e produtos usados na medicina popular são obtidos da traíra e do pirarucu.
Esses e inúmeros outros serviços que os peixes prestam à natureza são meu objeto de estudo e dos meus colegas do Núcleo de Pesquisas em Limnologia, Ictiologia e Aquicultura (Nupélia), da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
Juntamente com alguns parceiros, muitos deles também de fora do Nupélia, pude contribuir com uma revisão sobre os serviços ecossistêmicos gerados por peixes de água doce neotropicais, o agrupamento mais diverso de vertebrados do planeta. O trabalho foi publicado na revista internacional Hydrobiologia. O nosso objetivo com esse artigo foi, principalmente, combater essa visão limitada das funcionalidades dos peixes.
Serviços ecossistêmicos
O trabalho avaliou os peixes à luz do conceito de serviços ecossistêmicos. Esse conceito considera como as espécies e ecossistemas prestam serviços à humanidade. Eles podem, por exemplo, prover recursos como alimentos, materiais e medicamentos. Também regulam processos ecológicos, como o controle de pragas ou o transporte de sementes, sustentam ecossistemas por meio da disponibilização de nutrientes e alteração física dos habitats, e inspiram a cultura por meio do lazer e tradições. Peixes são fundamentais em todos esses aspectos!
Piaus, bagres e diversos outros peixes servem de indicadores de poluição da água. Um estudo na Colômbia, por exemplo, mostrou que os peixes de água doce acumulam metais pesados em seus corpos. Isso é preocupante, porque esses peixes são uma importante fonte de proteína para a população. Esses animais também sustentam processos ambientais fundamentais.
Piraputangas e lambaris dispersam sementes das matas que cercam os rios. Eles se alimentam de frutos em áreas ribeirinhas de rios, lagos e planícies alagáveis, ajudando a espalhar sementes e a manter a vegetação dessas regiões.
Outros peixes processam detritos ao se alimentarem de matéria orgânica em decomposição ou consumindo restos de animais mortos, por exemplo. Além disso, controlam explosões de algas, reciclando nutrientes como o fósforo e o potássio.
Peixes como os do gênero Prochilodus atuam como engenheiros do ecossistema, com forte controle sobre as comunidades de perifíton (um complexo de algas, bactérias, fungos, animais e detritos que aderem a substratos submersos) e fitoplâncton (conjunto dos organismos aquáticos microscópicos que vivem dispersos na água e fazem fotossíntese). Isso afeta a entrada de nutrientes na coluna d’água, a estrutura física dos micro habitats e a dispersão dos invertebrados.
Até a formação de solos de terra preta na Amazônia pode se dever à adubação proporcionada pelos peixes mortos ali e depositados nas secas. Na verdade, a lista de serviços prestados é muito diversa.
Os desafios dos rios represados
Os estudos do Nupélia se concentram na planície de inundação do único trecho livre de barragens do alto rio Paraná. É muito importante mantermos uma lupa neste ambiente, porque ele é o único trecho de calha do alto rio Paraná livre de barragens e com uma planície alagável anexa, sendo fundamental para a reprodução de inúmeras espécies de peixes.
As espécies que têm mais importância comercial são as de grande porte. Geralmente, elas são grandes migradoras, ou seja, precisam percorrer grandes distâncias para realizar a piracema e se reproduzir. Essa longa migração precisa contar com trechos de rio livres de barragens.
Grande parte dos rios da região, incluindo o Paraná (de Itaipu para cima) e seus afluentes, está represada, com poucos trechos livres de barragens. A área onde atuamos, portanto, é essencial para o ciclo de vida de espécies como dourado, jaú e pintado, funcionando como berçário natural.
Sem a planície alagada, ovos e larvas não sobrevivem, pois seriam arrastados direto para o rio principal e predados. Por isso, monitoramos e buscamos preservar esse processo ecológico complexo, o que nos transformou em verdadeiros protetores das espécies que vivem na região.
Colaborações científicas
O Nupélia é multidisciplinar. Também é parceiro do Programa de Pós-Graduação em Ecologia de Ambientes Aquáticos Continentais (PEA), cuja maioria das dissertações e teses são desenvolvidas nesse ambiente. A nossa equipe atua na planície procurando descrever e entender a distribuição e ecologia das espécies dos organismos aquáticos na região. Coletamos juntos, nos mesmos locais e ao mesmo tempo.
Inúmeras vezes, nos últimos 40 anos, um grande grupo de pessoas tem se deslocado para Porto Rico, cidade a 172 km de Maringá, e despendido horas coletando peixes e outros organismos de diferentes locais da região.
Por exemplo, para saber o que determinada espécie de peixe come, precisamos ver o que ela tem no estômago, mas, é difícil saber se ela escolheu o “menu” porque tinha muita oferta, por opção ou porque só tinha aquilo.
Quando trabalhamos em conjunto, temos como saber. Se for uma espécie, por exemplo, que se alimenta de inseto aquático, quem for responsável por analisar o estômago vai entrar em contato com o laboratório de insetos aquáticos e vão fazer a pesquisa juntos. O mesmo vale para também outros grupos da fauna e da flora.
Buscamos entender como os peixes se reproduzem, por quais rios sobem para a reprodução e em que época, quanto tempo as larvas levam para se desenvolver, o quanto e por quanto tempo a planície precisa ficar alagada para isso acontecer.
Esse conhecimento só vem com anos de pesquisa, porque os ciclos variam, mas seguem padrões sazonais. Com esses dados, foi possível definir o período da piracema, o tamanho mínimo de malha e de peixe que pode ser capturado — decisões que variam conforme a espécie e ajudam a preservar os estoques.
Muita gente depende disso: pescadores, ribeirinhos, consumidores, o turismo, as peixarias. E, o mais importante: já conseguimos barrar a construção de uma hidrelétrica na região graças a esse trabalho científico e à atuação nas esferas públicas.
A Usina Hidrelétrica (UHE) Ilha Grande, entre Guaíra e Porto Primavera, inundaria áreas protegidas e o último trecho livre de barragens no alto rio Paraná, ameaçando peixes migradores já extintos em outras partes da bacia.
Hoje, membors do Nupélia e do PEA coordenam os Novos Arranjos de Pesquisa e Inovação (NAPI) Taxonline, da Fundação Araucária, agência de fomento à pesquisa científica do Paraná, que trabalha com coleções biológicas científicas e o NAPI Biodiversidade, que estuda inovações em estratégias biotecnológicas para a conservação da Biodiversidade.
Tenho certeza que agora, quando estiver saboreando um peixinho, você vai se lembrar dos vários outros serviços que os peixes nos prestam!