Pesquisas recentes sobre pequenas partículas extremamente leves chamadas neutrinos podem ter passado desapercebidas por você, assim como os mais de 10 trilhões de neutrinos que atravessam seu corpo a cada segundo. Mas agora, nosso novo estudo – com a contribuição de 21 países, mais de 60 institutos e cerca de 360 cientistas – relata a detecção do neutrino de mais alta energia já observado até agora.
Apesar do enorme número de neutrinos ao nosso redor, esse é um dos eventos astronômicos mais empolgantes – e mais raros – do ano. Nosso estudo foi publicado recentemente na revista científica Nature.
Os neutrinos são partículas elementares (subatômicas) minúsculas, abundantes em nosso Universo. Mas você provavelmente nunca viu um. Eles não interagem com o resto da matéria das maneiras que estamos acostumados a ver.
Como não têm carga elétrica, por exemplo, a força eletrostática que governa a maioria das nossas experiências cotidianas não interage com os neutrinos. E sua massa extremamente pequena significa que a gravidade – a outra poderosa força que experimentamos cotidianamente – também não tem grande efeito sobre eles em condições de laboratório na Terra.
Detectar sua presença, portanto, é no mínimo um desafio.
Os neutrinos podem ser produzidos em um grande número de ambientes. Entre eles estão os decaimentos radioativos de bananas, o interior do Sol, durante a morte violenta de uma estrela maciça e nos discos quentes e densos de matéria ao redor de buracos negros supermaciços, para citar apenas alguns.
Eles são formados por meio das ações da força nuclear fraca, que rege o decaimento radioativo. É essa força que permite que partículas com carga positiva chamadas prótons, que compõem o núcleo atômico, se transformem em nêutrons, partículas com carga neutra que também existem no núcleo atômico, e vice-versa.
Não podemos detectar um neutrino diretamente. Mas, de vez em quando (embora muito raramente), eles se chocam com alguma coisa. Quando isso acontece, a ação dessa força nuclear fraca pode levar à criação de uma partícula carregada, como um elétron, aparentemente do nada. E estas partículas carregadas nós podemos detectar.
Essas partículas carregadas viajam a velocidades enormes. E quando elas se movem em um meio como a água, criam um brilho azul fraco e assustador à medida que são desaceleradas. Esse fenômeno, chamado de efeito Cherenkov, também ocorre em piscinas de contenção de reatores nucleares.
Qual é a probabilidade (ou improbabilidade) dessas interações? Bem, você teria que tirar 75 caras seguidas em lançamentos de uma moeda justa para ter a mesma probabilidade de um único neutrino interagir com uma partícula de matéria. Acha que isso é fácil? Vá em frente e jogue a moeda. Vai demorar um pouco.
No fundo do mar
A colaboração do telescópio KM3NeT usa o efeito Cherenkov para observar as profundezas do Mar Mediterrâneo em busca do brilho fraco e revelador desses eventos envolvendo os neutrinos. A colaboração opera duas enormes estações de detecção – uma na costa de Toulon, na França, e outra na costa sul da Sicília. Os cientistas ficam atentos em busca destes eventos o tempo todo.
A escala desses detectores é gigantesca, assim como a maioria dos detectores de neutrinos, já que a única maneira de detectar a elusiva colisão de neutrinos com outras partículas é tentar aumentar a quantidade de matéria com a qual o neutrino pode interagir. Na verdade, a parte KM3 do acrônimo KM3NeT representa o um quilômetro cúbico (KM³) de água do mar que o detector abrangerá quando estiver concluído.
As estações de detecção consistem em quase 600 detectores de luz – boias esféricas, cada uma contendo 31 tubos sensores de luz, que são presos a cabos ancorados no fundo do mar a até 3,5 km abaixo da superfície.
A partícula descrita em nosso artigo recente na Nature foi detectada em 13 de fevereiro de 2023. E você pode se perguntar por que essa longa espera para anunciar sua detecção? Este tempo foi gasto por cientistas colaboradores de toda a Europa verificando e simulando a detecção para confirmar a natureza do evento. Após meses de trabalho da equipe do KM3NeT, podemos finalmente dizer que essa é a observação mais energética de uma interação de neutrinos já registrada.
Cerca de 28.000 fótons (partículas de luz) foram detectados em toda a matriz do detector na Sicília, indicando que um evento extremamente energético acabara de acontecer. Uma lâmpada média de 75 Watts gera milhões e milhões de fótons a cada segundo (cerca de 100 quintilhões, para ser mais preciso). Assim, embora esses poucos milhares de fótons possam parecer que foi um evento pequeno, lembre-se de que isso foi gerado por uma única minúscula partícula.
Na verdade, a energia do neutrino responsável por essa exibição brilhante foi estimada em 220 peta-eletronvolts (PeV), ou 30 vezes mais energética do que o neutrino de maior energia registrado até então. Em termos de energias de partículas, ele é cerca de 1.000 vezes mais energético do que as partículas geradas no Grande Colisor da Hádrons (LHC, na sigla em inglês) no Centro Europeu de Pesquisas Nuclares (Cern), o maior e mais energético acelerador de partículas do mundo.
A luz gerada por esse evento recorde pôde ser acompanhada através da matriz do detector, e nossa colaboração conseguiu usá-la para reconstruir a trajetória quase horizontal desse neutrino de alta energia. O caminho percorrido indica que esse neutrino é de origem cósmica, isto é, de fora da nossa galáxia, a Via Láctea.
Não sabemos exatamente de onde ele veio, mas identificamos 12 potenciais blazares (núcleos brilhantes de galáxias ativas, com buracos negros gigantescos) que podem tê-lo produzido. Também é possível que ele tenha sido criado na interação de raios cósmicos com fótons da radiação cósmica de fundo, o “eco” do Big Bang.
Essa detecção oferece uma janela para os fenômenos de energia ultra-alta que ocorrem no Universo e pode, por exemplo, nos ajudar a entender melhor a natureza de alguns dos raios cósmicos mais energéticos. Além disso, a observação pode nos ajudar a testar ainda mais os modelos teóricos que preveem a existência de neutrinos de alta energia.