Cientistas geram camundongos sem mãe, mas com dois pais

por The Conversation
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Cientistas geram camundongos sem mãe, mas com dois pais

No início de março de 2023, no Instituto de Pesquisas Francis Crick, em Londres, um pesquisador japonês, Katsuhiko Hayashi, deixou a plateia da Terceira Cúpula Internacional sobre Edição de Genes Humanos atônita ao contar como havia conseguido gerar camundongos sem mãe, com apenas dois “pais”.

Na verdade, o cientista havia descoberto um procedimento complexo e altamente sofisticado para converter células-tronco pluripotentes (embrionárias ou induzíveis) masculinas em femininas, permitindo que obtivesse “óvulos” de um macho. Sua surpreendente descoberta foi publicada na revista científica Nature algumas semanas depois.

De XY para XX

Em resumo, Hayashi aproveitou um evento muito raro que ocorreu ao manter essas células em cultura (a perda espontânea do cromossomo Y) para resgatá-las e promover experimentalmente a duplicação do cromossomo X. Dessa forma, ele conseguiu converter uma célula-tronco masculina (XY) em uma célula-tronco feminina (XX). E, a partir dessas últimas, ele passou a diferenciá-las em células ovarianas para acabar obtendo oócitos… que vieram de células masculinas! Esses óvulos podem ser usados para fertilização in vitro (FIV) com esperma de outro camundongo macho para obter embriões, que são gestados em um camundongo fêmea e dão origem a camundongos aparentemente normais e férteis, cujo pai e mãe são dois camundongos machos.

Esses resultados também abriram a porta para a obtenção de camundongos cujo pai e mãe eram o mesmo indivíduo, um camundongo macho. Normalmente, ele forneceria esperma e óvulos obtidos, por exemplo, de células de sua pele, a fim de obter embriões por fertilização in vitro, aproveitando o fato de que os camundongos suportam naturalmente o máximo de consanguinidade que tal procedimento implicaria.

Um pequeno camundongo com dois pais

Quase dois anos depois, uma equipe de pesquisadores chineses, liderada por Zhi-kun Li, Wei Li e Qi Zhou, da Academia Chinesa de Ciências, mais uma vez nos surpreendeu com um procedimento análogo para criar camundongos a partir de dois camundongos machos.

Qi Zhou é um pesquisador que liderou muitos avanços espetaculares em procedimentos de reprodução assistida, transgênese, clonagem e edição de genes em camundongos e primatas não humanos. No entanto, os cientistas chineses agora optaram por um caminho totalmente diferente para o mesmo resultado: fazer de dois camundongos machos os progenitores de um bebê camundongo, produzido sem intervenção biológica materna, embora ainda precise de um camundongo fêmea para gestar os embriões assim gerados. O resultado foi publicado na revista Cell Stem Cell.

Esse novo procedimento desenvolvido por Li e seus colegas é tão sofisticado, se não mais, quanto o anterior desenvolvido por Hayashi. Nesse caso, os pesquisadores pretendem combater uma das barreiras para a obtenção de embriões viáveis de mamíferos por meio da combinação de dois gametas do mesmo sexo (dois espermatozoides ou dois óvulos).

O problema do imprinting genético

Esses embriões não sobrevivem naturalmente, pois os mamíferos têm um sistema de controle chamado imprinting genético que exige que todo embrião derive de um gameta masculino (espermatozoide) e um gameta feminino (óvulo). O motivo é que há genes em nosso genoma que só funcionam se forem herdados da mãe e outros que só são expressos se forem herdados do pai. E todos eles são essenciais para a sobrevivência.

O protocolo altamente complexo criado pelos pesquisadores chineses começa com a injeção de um espermatozoide em um óvulo enucleado (sem material genético), induzindo seu desenvolvimento inicial em blastocistos com apenas metade do material genético necessário. Isso possibilita a obtenção de células pluripotentes embrionárias chamadas células haploides (elas têm apenas metade do genoma, faltando o genoma materno) e células androgenéticas (derivadas do esperma).

As células assim obtidas são cultivadas por tempo suficiente para extirpar, graças às ferramentas de edição de genes CRISPR, as regiões do genoma sujeitas ao imprinting genômico (em nada menos que 20 locais do genoma). Assim, eles eliminam esse mecanismo de controle que os mamíferos possuem.

Por fim, os cientistas injetam uma dessas células haploides androgenéticas editadas em outro óvulo enucleado junto com outro espermatozoide normal. A célula injetada desempenha o papel “materno” (embora seja derivada do esperma), enquanto o esperma recém-injetado desempenha o papel “paterno”. Eles levam esse embrião de volta ao estágio de blastocisto e obtêm novamente células embrionárias pluripotentes (agora já biparentais), que finalmente injetam em outro blastocisto tetraploide (obtido experimentalmente com quatro cópias do genoma), comumente usado em embriologia para garantir o desenvolvimento de uma placenta. Esse embrião é gestado por um camundongo, e os animais que nascem derivam de dois espermatozoides, de dois pais, sem a participação genética de óvulos, sem uma mãe.

Problemas a serem resolvidos

Esse procedimento, porém, não é um sucesso completo. Como os próprios autores admitem, os camundongos gerados por esse protocolo não são férteis e só podem ser reproduzidos por clonagem. Além disso, mais da metade desses camundongos paternos biparentais não sobrevive, morre precocemente, não amadurece adequadamente e não atinge a idade adulta.

A explicação para esses problemas provavelmente decorre do procedimento de edição CRISPR usado para remover o imprinting genético, que é muito arriscado, não é executado de forma ideal e gera alterações imprevistas.

Em um estudo anterior, a mesma equipe de pesquisa havia demonstrado que camundongos biparentais maternos (duas mães, sem pai) eram férteis e sobreviviam mais do que camundongos biparentais paternos (dois pais, sem mãe), que morriam logo após o nascimento. No novo artigo que publicaram agora, eles melhoraram os resultados, embora ainda apenas parcialmente.

E se a técnica fosse aplicada em humanos?

Esses são estudos experimentais usando embriões de camundongos. Mas qual seria a importância e o impacto se essas técnicas se aprimorassem tanto que pudessem ser usadas com segurança para produzir embriões humanos?

Se possível (ainda não é possível), elas promoveriam uma verdadeira revolução nas clínicas de reprodução assistida. Por exemplo, casais homossexuais masculinos poderiam ser os pais biológicos de seus filhos. Um deles forneceria o esperma e o outro forneceria células-tronco pluripotentes que, seguindo qualquer um dos dois procedimentos (da equipe japonesa ou da chinesa), acabariam produzindo óvulos que poderiam ser fertilizados in vitro e gestados por uma mulher por meio de barriga de aluguel. Isso é ilegal na Espanha, mas permitido em outros países.

Atualmente, se quiserem ter filhos biológicos, um casal gay masculino deve decidir qual deles fornecerá o esperma que será usado para fertilizar um óvulo de uma doadora. As crianças que nascem são filhas biológicas apenas de um dos dois parceiros.

Da mesma forma, um casal feminino do mesmo sexo também poderia ter filhos biológicos com a contribuição de ambas as mulheres se uma delas fornecer óvulos e a outra fornecer células-tronco pluripotentes que acabarão produzindo espermatozoides (seguindo o procedimento desenvolvido pela equipe chinesa). Qualquer uma das duas mulheres poderia gestar o embrião assim obtido, e as crianças nascidas seriam filhas biológicas de ambas.

E se deixarmos nossa imaginação correr solta, supondo (o que é muito para supor) que consigamos superar a consanguinidade máxima – o que é viável em camundongos, mas não em humanos – tanto homens quanto mulheres individualmente, como famílias monoparentais, poderiam ter filhos cuja dotação genética viesse apenas deles mesmos.

Um homem poderia fornecer esperma naturalmente e, a partir de suas células da pele, obter óvulos que seriam fertilizados com seu próprio esperma. O embrião resultante seria carregado por uma mulher e a criança nascida seria gerada pelo mesmo homem.

Da mesma forma, uma mulher poderia fornecer óvulos e, a partir de suas células da pele, desenvolver espermatozoides em laboratório, que seriam usados para fertilizar seus próprios óvulos. O embrião resultante poderia ser gestado pela própria mulher, e a criança nascida teria a mesma mulher como pai e mãe.

No momento, todas essas aplicações na reprodução humana assistida continuam sendo ficção científica, tanto porque ainda não são tecnicamente possíveis quanto porque seria imprudente tentar implementá-las. Mas, supondo que todos esses protocolos sejam otimizados e que chegará o dia em que poderemos considerar se queremos ou não oferecê-los em clínicas de reprodução assistida, acho importante refletir sobre isso e nos perguntar quais dessas técnicas estaríamos dispostos, como sociedade, a aceitar eticamente e a aprovar legalmente.


Uma versão deste artigo foi publicada originalmente no Science Media Center.


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