A Novíssima Ficção Portuguesa é a denominação atribuída à geração de escritores que tem ativa produção ficcional a partir das últimas décadas do século XX e que se estende pelo século XXI até os nossos dias. Meu artigo de 2016 estabeleceu o marco inicial desta classificação.
Podemos elencar características importantes dessa literatura: o afastamento dos temas históricos, a universalização da Literatura Portuguesa, o rompimento com pensamentos identitários vigentes que se mantêm em voga desde os idos tempos das navegações.
Sopram novos ventos sobre Portugal
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, já canta o velho Camões em seus versos. Depois de um século XX atormentado por uma ditadura nefasta (1933-1974) e por uma guerra colonial assombrosa, Portugal inicia um processo de redemocratização e de construção de uma identidade que transcende o desejo do Quinto Império e do retorno mítico de Dom Sebastião.
É preciso lembrar, também, que esse mesmo século é tempo de grandes ficcionistas, como Alves Redol, Carlos de Oliveira, José Saramago, António Lobo Antunes, Lídia Jorge, Agustina Bessa-Luís e Teolinda Gersão entre tantos outros. Ainda, é o século de Fernando Pessoa, que constrói uma poética fragmentada e múltipla, que flerta com a portugalidade e com os movimentos artísticos em voga.
O século XXI aponta para novidades temáticas e estéticas na Literatura Portuguesa. A Novíssima Ficção avança em autores e obras e ocupa lugar de destaque na formação de um imaginário contemporâneo e celebrado como o tempo de um novo cânone e uma nova compreensão do sujeito português.
Mas todas as outras gerações literárias não foram inovadoras e não romperam, inaugurando novas percepções e experimentações diversas? Sim, todas foram arrojadas quando surgiram em meio às necessidades de transformação e renovação do pensamento crítico social, cultural e estético.
Cinco obras de cinco escritores como um convite
No entanto, nós, leitores, estamos vivendo esse momento de produção, somos agentes dessa nova literatura como a extremidade que lê, identifica e valida essa atualidade. Para iniciarmos o percurso por essa Novíssima Ficção (e esse superlativo tão empolgante) podemos elencar cinco escritores e obras como convite para conhecer a produção contemporânea portuguesa:
1.Jerusalém (2005), de Gonçalo M. Tavares (1970)
Gonçalo M. Tavares é um dos escritores mais aclamados da atualidade em Portugal, e Jerusalém é uma de suas principais obras. A trama, é o terceiro livro que constitui a coleção O Reino. A narrativa é ambientada em uma cidade sem nome, onde personagens complexos enfrentam dilemas morais e existenciais. A violência, a loucura e a redenção são os fios condutores das ações das personagens que rememoram dores físicas e psicológicas. “Jerusalém” é uma leitura desafiadora e instigante, que convida o leitor a refletir sobre a natureza humana e a sociedade contemporânea.
2. A boneca de Kokoschka (2010), de Afonso Cruz (1971)
Afonso Cruz tornou-se conhecido pela versatilidade e lirismo de sua produção. A boneca de Kokoschka, é uma narrativa de onde emergem temas como a memória, o amor e a arte. A fábula acompanha a história da boneca criada por Oscar Kokoschka e como sua existência se desdobra nos destinos de homens e mulheres diferentes, mas ligados entre si por acontecimentos específicos. O romance de Afonso Cruz explora a complexidade das relações humanas e a busca por sentido na vida.
3. No meu peito não cabem pássaros (2011), de Nuno Camareiro (1977)
No meu peito não cabem pássaros é uma das mais interessantes narrativas da Novíssima Ficção Portuguesa. Nuno Camarneiro recria três personagens da literatura e da história do século XX: Karl, personagem do romance inacabado de Franz Kafka; Jorge Luís Borges, o escritor argentino e Fernando Pessoa, poeta português. O que une as três existências dessas personagens é a passagem do cometa Halley no ano de 1910 e todos os medos e crenças que se originam desse acontecimento. O experimentalismo estético proposto por Nuno Camarneiro é um dos grandes exemplos da essência dessa geração literária.
4. Os dias úteis (2017), de Patrícia Portela (1974)
Os dias úteis é uma novela e um jogo ao mesmo tempo, característica das narrativas da autora que oferta aos leitores puzzles literários, cujas possibilidades de encaixes e resolução se apresentam ao longo da leitura. São sete contos curtos que tratam do cotidiano hiperbólico de uma personagem sem tempo para fazer tudo o que planeja e deseja. A protagonista, Alice Winston Smith, apresenta-se como alguém que entende fazer parte de um complexo conjunto que é muito maior, e que ao mesmo tempo é múltipla, o que faz perceber a sua impessoalidade no mundo contemporâneo.
5. Ecologia (2018), de Joana Bértholo (1982)
Ecologia é uma das mais significativas obras da Novíssima Ficção Portuguesa. O romance de Joana Bértholo se caracteriza como uma distopia onde se apresentam críticas à sociedade contemporânea vazia e mercantilista, sobretudo no que diz respeito à linguagem e tudo o que é dito e não dito. Ocupam-se os lugares das palavras e dos silêncios em diferentes aspectos como a escuta, a fala e a compreensão. Questionador, o romance se alicerça em vozes intercaladas, citações, informações variadas, inserções de códigos QR e outras formas inusitadas que alimentam a construção do texto.
Mas a Novíssima Ficção não se esgota nessas cinco obras
Essas cinco obras são apenas uma parte da vasta produção denominada como Novíssima Ficção Portuguesa, que se caracteriza pela diligente construção de uma literatura que compreenda a universalidade do mundo contemporâneo e Portugal nesse espaço imaginário e fértil que é a arte literária. Diferentes críticos e estudiosos, como Miguel Real (O romance português contemporâneo 1950-2010,2012), João Barrento (A chama e as cinzas,2016) e Jorge Vicente Valentim (A prateleira hipotética, 2024), buscam em seus estudos e apreciações elencar e formar um panorama teórico que possa identificar peculiaridades e vozes que compõem esse novo tempo da literatura portuguesa em diferentes dimensões.
A Novíssima Ficção Portuguesa, portanto, não se esgota nesses cinco escritores e suas obras. Valter Hugo Mãe, Ana Margarida de Carvalho, João Tordo, Dulce Maria Cardoso, Patrícia Reis, Gabriela Ruivo Trindade, Hugo Gonçalves, Possidônio Cachapa, Afonso Reis Cabral e tantos outros são nomes constantes.
Livro após livro, elas convergem para a principal característica dessa literatura, entre lirismos e questões filosóficas: a formação de uma identidade múltipla, universal e aberta ao tempo do agora. Tanto das mãos que escrevem essa nova literatura, quanto dos olhos dos leitores que buscam um novo Portugal.





