Entre amanhã, dia 4, e o dia 7 de julho, a cidade do Rio de Janeiro abrigará a 17ª Cúpula de Chefes de Estado do BRICS, a primeira reunião do fórum após sua ampliação, em 2024, quando passou a ser chamado de BRICS+. Agora com cinco países convidados (Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos), além dos cinco países membros originais (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), o grupo inicia uma fase com diversidade política, econômica e geográfica ainda maior. Mais uma alteração é a indicação de países parceiros que podem participar dos fóruns multilaterais, como Turquia, Argélia, Cuba, Bolívia, Tailândia, Vietnã e Nigéria.
O contexto atual insere novas possibilidades e desafios na agenda do fórum. Um desses desafios é refletir sobre as formas de cooperação possíveis frente às assimetrias do conjunto de membros e à fragmentação dos interesses internacionais. Ao longo de 2025, como amplamente noticiado, a presidência brasileira elegeu a cooperação global em saúde uma das suas seis prioridades.
A ênfase na transversalização da saúde destaca pontos da Declaração de Oslo, de 2007, especialmente no que se refere à articulação entre saúde e desenvolvimento, reafirmando que “a parceria global para superar as barreiras estruturais e econômicas ao desenvolvimento e à saúde é fundamental para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e reduzir as vulnerabilidades a doenças infecciosas negligenciadas e emergentes”.
As barreiras estruturais mencionadas na Declaração de Oslo podem ser compreendidas à luz do que a Organização Mundial da Saúde (OMS) passou a denominar, em 2005, de determinantes sociais da saúde (DSS). O conceito foi consolidado no relatório Redução das desigualdades em uma geração, publicado em 2008, que classifica os DSS como “as condições em que as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham e envelhecem, moldadas pela distribuição de poder, recursos e políticas”.
Assumir tais condições como barreiras implica em admitir que há populações cujas possibilidades de saúde são sistematicamente comprometidas desde o nascimento — não por acaso ou ineficiência, mas porque a iniquidade é parte constituinte da arquitetura política e economia globais.
No caso das doenças tropicais negligenciadas (DTN), um marco importante é o relatório publicado pela OMS em 2009 — Doenças Tropicais negligenciadas, sucessos escondidos, oportunidades emergentes, em que a organização as define como “sintomáticas da pobreza e da desvantagem” e descreve que “persistem em condições de pobreza e estão concentradas quase exclusivamente em populações dos países em desenvolvimento”.
Ao decidir enfrentar essas doenças, o Brasil convoca inevitavelmente o BRICS a enfrentar o próprio modelo que as gera e que, há décadas, condena regiões e populações inteiras à negligência, alimentada pela inação que predomina na arena política, inclusive na OMC.
Transversalização da saúde na política externa
No contexto de toda essa discussão, o Brasil retoma, em sua presidência do BRICS, a proposta da transversalização da saúde na política externa, formulada na Declaração de Oslo, como estratégia para enfrentar múltiplos problemas sociais. Destaca também a interseccionalidade dessa abordagem, por meio do reconhecimento de grupos sociais específicos que, em diferentes países, vivenciam experiências recorrentes de opressão, como as barreiras estruturais ao acesso à saúde.
No Brasil, esses grupos incluem, majoritariamente, mulheres, mães solo e famílias que vivem em periferias urbanas ou zonas rurais precárias, em maioria pretas ou pardas e com renda familiar de até três salários mínimos (classes D e E).
A cooperação vislumbrada precisa ser transversal e interseccional, e não meramente técnica. Essa mesma lógica inspira o Programa Brasil Saudável (PBS), lançado em fevereiro de 2024 e integrado por 14 ministérios com o objetivo de eliminar sete doenças tropicais negligenciadas (DTN) — doença de Chagas, esquistossomose, malária, filariose linfática, geo-helmintíase, oncocercose e tracoma — além de Aids, hanseníase, tuberculose, hepatites virais e infecções de transmissão vertical (HIV, sífilis, hepatite B, HTLV e doença de Chagas).
Para alcançar seus propósitos, o PBS articula ações sanitárias a políticas centradas nos determinantes sociais da saúde DSS, sobretudo aqueles relacionados à pobreza e ao ambiente. A iniciativa incorpora a premissa da construção de sistemas nacionais de saúde resilientes através do treinamento de profissionais de saúde, da harmonização regulatória, da pesquisa em tuberculose, da produção de vacinas e da construção de hospitais inteligentes.
Modalidades de cooperação dos BRICS
A diretriz brasileira de fortalecer a cooperação global em saúde abrange três dimensõesintra interligadas. A primeira é a própria cooperação intra-BRICS, que consolida capacidades já existentes no bloco ao facilitar o compartilhamento de tecnologias, a formação de profissionais e a produção conjunta de insumos estratégicos.
É sabido que países dos BRICS possuem alguns grandes ativos em saúde, como o Serum Institute of India, que é o maior centro de vacinas do mundo; o SUS, maior sistema público universal; a liderança da África do Sul em vigilância genômica e resposta a pandemias; e a diplomacia da saúde da Rússia, fortalecida desde 2020 com a Sputnik V.
Além disso, iniciativas como o BRICS Vaccine Research Centre (rede entre institutos dos países do bloco para pesquisar, desenvolver e produzir vacinas de forma colaborativa) exemplificam o potencial comum em pesquisa e inovação dos primeiros integrantes do fórum.
Mais um exemplo é a vertente sanitária da Nova Rota da Seda, da China – denominada de Health Silk Road, que é voltada ao fortalecimento da infraestrutura hospitalar, cooperação em pesquisa farmacêutica, respostas a emergências sanitárias e expansão da medicina tradicional chinesa. A ideia é se beneficiar dos mesmos corredores logísticos, portos e redes digitais para instalar laboratórios, hospitais, sistemas de vigilância e hubs de vacinas em mais de 145 países, combinando empréstimos com transferência de tecnologia e capacitação de profissionais.
Em segundo lugar, temos a atuação conjunta dos BRICS+ em cooperação com outros atores de forma a alavancar a governança global da saúde. Essa modalidade permite que os países membros ajam de modo coordenado na OMS, por exemplo, para apoiar reformas que ampliem a voz dos países do Sul Global.
Nesse cenário, o tratado pandêmico em negociação na OMS desde 2022 — com previsão de conclusão ainda em 2025 — representa oportunidade de o BRICS+ influenciar a definição de regras vinculantes para preparação e resposta a emergências, bem como de partilha equitativa de tecnologias sanitárias.
Um tema relevante nesta modalidade de cooperação é o financiamento da saúde global. O Dossiê “BRICS+ e o Futuro Soberano do Sul Global” da Rede Brasileira de Integração dos Povos (Reprib), publicado em junho de 2025, informa que o BRICS precisa assumir um papel estratégico e transformador, tendo “a oportunidade de construir uma nova ordem internacional baseada na soberania sanitária, solidariedade e justiça”.
Também se destaca a necessidade de aprofundar as convergências históricas refletidas na contestação conduzida por Brasil, Índia e China ao regime de propriedade intelectual consagrado no Acordo TRIPS da OMC durante negociações multilaterais de produtos farmacêuticos.
O BRICS traz a soberania sanitária em sua essência, não apenas pela capacidade em vacinas, ciência e logística já mencionadas, pela indústria indiana de genéricos ou pela liderança chinesa na produção de Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs) mas, sobretudo, pela trajetória de enfrentamentos políticos à mercantilização da saúde — hoje também presente no filantrocapitalismo.
Diante de um cenário internacional de fragmentação de interesses, intensificação do medo e da insegurança e ascensão de ideologias nativistas, é imperativo garantir que soberania sanitária, solidariedade e justiça não fiquem na retórica ou como atributos exclusivos de blocos ou países.
Esses princípios só se concretizam quando políticas e práticas se expandem justamente em contextos geopolíticos adversos, nos quais crises se sobrepõem nos mesmos territórios, inviabilizando respostas graduais. O papel estratégico e radicalmente transformador, portanto, depende de decisões políticas pragmáticas que queremos para o horizonte do BRICS.