A cartografia e os mapas históricos têm grande potencial de contribuição para o desenvolvimento humanizado, sustentável e planejado das cidades e do planeta. Guardam um extraordinário volume de informações sobre o passado dos territórios. É por isso que podem se tornar instrumentos de trabalho valiosos no planejamento urbano, na gestão de riscos, na recuperação de paisagens desaparecidas e nas ações contra a desigualdade étnico-racial — desde que sejam conhecidos, estudados e bem explorados, facilitando o acesso a muitas camadas de informação histórica.
Essa visão ganhou ainda mais força na Agenda 2030, que reúne os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), propostos pela ONU na Agenda 2030,. No Brasil, ela se amplia com a proposta de criação de um 18° princípio voltado à igualdade étnico-racial, apresentada pelo governo federal.
Surgida no final do século XIX, a cartografia foi impulsionada, nas últimas décadas, pela expansão das tecnologias digitais, como os sistemas de localização por satélite (GPS) e os Sistemas de Informação Geográfica (SIG). A popularização dos smartphones ampliou ainda mais esse movimento.
Nos últimos quinze anos, tanto a cartografia como os mapas se consolidaram como ferramentas e temas de pesquisa em várias áreas das ciências humanas, sociais, aplicadas, ecológicas e do urbanismo. Uma seleção de 455 artigos publicados na Plataforma CAPES ajuda a dimensionar essa expansão.
Cerca de 81% destes textos foram produzidos entre 2010 e 2025. Desses, apenas 55 eram produção nacional e 316 em língua estrangeira. Isso evidencia uma subutilização, ainda, da cartografia histórica no Brasil, mesmo sendo uma ferramenta de reconhecido valor em projetos de mitigação de urgências contemporâneas. Entre elas, a persistência da desigualdade étnico-racial ou as transformações climáticas vividas pelo planeta.
Antes de ir adiante, vale esclarecer que embora as palavras cartografia e mapas apareçam muitas vezes associadas, elas representam processos distintos. A cartografia reúne estudos e práticas científicas, técnicas e artísticas baseadas em observações ou documentos. É um campo diverso — há a cartografia escolar, histórica, social ou participativa, da paisagem, temática, simbólica, cognitiva, digital e cultural, entre outras. Todos estes ramos utilizam mapas. A cartografia histórica, por exemplo, refere-se ao manuseio de mapas antigos, nascidos em suporte físico, como papel ou pergaminho, manuscritos ou impressos e também daqueles originalmente feitos em formato e suporte digital (mapas nativos digitais).
Leituras decoloniais
Nos dias atuais, diversas iniciativas no campo do urbanismo, políticas públicas e ecologia têm demonstrado que mapas históricos não são um nicho restrito a historiadores ou colecionadores endinheirados, mas importantes fontes de informações de interesse e utilidade científica e coletiva.
Um número crescente de pesquisadores tem feito uso sistemático de mapas antigos conservados e acessíveis guardados em coleções físicas e digitais de bibliotecas e instituições públicas e privadas. Em seus contornos, muitas vezes retificados por Sistemas de Informação Geográfica ou interpretados com o auxílio de outras fontes textuais ou visuais, é possível encontrar informações diversas sobre córregos, ribeirões, rios e seus transbordamentos, dados paleogeográficos, geomorfológicos, ações humanas ao longo do tempo, etnias indígenas e suas ocupações e movimentações antigas pelo território.
Neste último caso, o monumental “Mapa etno-histórico do Brazil e regiões adjacentes”, produzido por Curt Nimuendajú em 1943, é um exemplo seminal e ferramenta estratégica para ações em favor da igualdade étnico-racial.
Da mesma forma, na Universidade Estadual Paulista (UNESP), um projeto pioneiro, sob minha direção, se dedica a ampliar iniciativas voltadas à catalogação, tabulação de informações e disponibilização contextualizada, na web, de mapas antigos feitos por missionários no passado colonial. A finalidade é facilitar o uso desses mapas por comunidades, lideranças indígenas, ambientalistas e ecologistas. Todo esse trabalho vem sendo realizado por uma força-tarefa composta por jovens estudantes de graduação e pós-graduação.
O amplo, variado e disperso volume de mapas feitos por missionários de todas as ordens religiosas é a fonte que mais ressalta a face indígena do Brasil. Missionários foram os primeiros etnólogos a levantar e catalogar todos os tipos de informações ambientais e também localizações, movimentações, manejos e cosmovisão dos grupos indígenas do território.
Tais informações podem ser de extrema importância para os projetos de igualdade étnico-racial. Elas devem ser avaliadas criticamente, salvaguardando o olhar, opiniões estigmatizadas e estereótipos próprios dos observadores de determinado segmento social e época.
Em expedições de mapeamento do século XVIII, esboços de terrenos em exploração serviram para os engenheiros militares desenharem mapas oficiais. Atualmente depositados em coleções particulares ou públicas, esses mapas trazem dados importantes. Por isso, necessitam ser localizados, descritos, contextualizados e divulgados pelos historiadores. Não somente pelas informações sobre ocupações humanas, mas também porque muitos desses esboços trazem registros hidrônimos antigos – os nomes originais de rios, córregos, lagos ou represas – elementos essenciais para identificar traçados fluviais desaparecidos ou soterrados nas paisagens urbanas atuais.
Não faz muito tempo, em outro projeto que coordeno, foi identificado um mapa contendo uma das mais antigas representações de uma comunidade indígena do sul do Brasil, como os Xokleng/Laklano. Recentemente, esses povos mudaram a política indígena do país em tribunal ao derrotarem a tese do marco temporal em favor do direito originário previsto na Carta Régia de 1640, a qual sustenta que os indígenas foram os primeiros senhores das terras do Brasil.
Este mapa, na forma de esboço feito em 1772 e encontrado na Casa da Insua, em Penalva do Castelo, Portugal, aponta um lugar nos campos de Curitiba, então chamado Campos de Guarapuava, onde existiam aldeias do “Gentio Xaclan”. Eram indígenas não batizados e não aldeados, que viviam autonomamente, sendo o etnônomo Xaclan um dentre as várias grafias do etnônimo Xokleng/Laklano.
Desenhos como estes, feitos por funcionários do Estado colonial, que ainda tateavam um território que mal conheciam, reforçam a legitimidade dos direitos originários e confirmam identidades sempre ameaçadas pelo argumento do desaparecimento.
Informações históricas e gestão de riscos
Se no planejamento urbano do século XX, a cartografia e mapas históricos foram negligenciados, como já foi abordado por especialistas e pelas mídias de divulgação cientifica, a realidade está mostrando que isso não será mais possível. Na Espanha, pesquisadores têm defendido a importância desses recursos como ferramenta para a gestão de riscos de enchentes e inundações.
No Brasil, em uma iniciativa pioneira, os pesquisadores do grupo Hímaco, do Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), disponibilizaram na web, há quinze anos, mapas históricos úteis com potencial para o desenvolvimento de projetos de gestão de riscos de enchentes.
Aplicando tecnologias de informação geográfica, a equipe mapeou as principais enchentes ocorridas em São Paulo entre 1870-1940 e deu acessibilidade contextualizada a um conjunto de mapas provenientes do Arquivo do Estado de São Paulo que permitem recuperar antigas morfologias e cursos de rios da cidade.
Na Planta Geral da Cidade de São Paulo de 1913, por exemplo, é observada a presença de um vale fluvial exatamente na área onde hoje se localiza a estação de metrô Jardim São Paulo-Ayrton Senna, na zona norte da cidade. O local funciona como um divisor de águas entre dois ribeirões extensos, ambos afluentes da margem direita do rio Tietê, que seguem caminho acima, ramificando-se por trechos mais altos da cidade.
Em janeiro de 2025, uma chuva intensa resgatou à força essa memória apagada da paisagem. A estação ficou completamente alagada, com o fluxo da água transformando escadas em cachoeiras e passageiros se agarrando onde podiam para não serem arrastados pela correnteza dentro do metrô.
No município de São Paulo, onde um terço do território ainda é composto por zonas rurais produtivas nas regiões leste, sul e norte — como no período colonial —, o resgate de práticas antigas pode oferecer soluções acessíveis para a gestão de inundações aproveitando as precipitações em irrigações de terrenos produtivos.
Diante da relevância dessas fontes de informação para a pesquisa, o planejamento urbano e a gestão de riscos, é evidente a necessidade de formar profissionais capazes de utilizá-las de forma qualificada. Um caminho promissor para essa formação é inserir o uso de mapas históricos no ensino médio, técnico ou universitário. É mais um meio para capacitar cidadãos e gestores públicos no entendimento da dinâmica dos territórios e para o planejamento de ações de mitigação de riscos de maneira humanizada, planejada e sustentável. Assim, a ação contra a mudança global do clima passa, também, pelo conhecimento local — inscrito na história das águas e dos territórios registrados nos mapas históricos.