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Como a Restauração Ecológica pode confundir controles sociais de desmatamento e queima de combustíveis

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Como a Restauração Ecológica pode confundir controles sociais de desmatamento e queima de combustíveis

A Restauração Ecológica é uma atividade antiga, ainda que nem sempre tenha recebido este nome. Poderiam ser incluídas nas definições contemporâneas de restauração as técnicas ancestrais de manejo florestal dos povos originários da América do Sul, mas o “projeto” de restauração mais lembrado no Brasil é o da Floresta da Tijuca, do século 19.

A restauração como empreendimento humano passou a contar com uma organização mais formal de 40 anos para cá, com confluência de diversas disciplinas, e com centros de desenvolvimento localizados principalmente na Austrália, Brasil e EUA. No mesmo período, a intensificação das crises ambientais levou a um reconhecimento do papel que a restauração pode cumprir na mitigação destes problemas. Isso atinge o auge com declaração da Década da Restauração de Ecossistemas da ONU, que vai de 2021 a 2030.

No entanto, ao longo destas últimas décadas, os dilemas éticos de quem trabalha com restauração (seja praticante ou pesquisador) não só não foram resolvidos como se avolumaram. Desde a publicação do texto do filósofo australiano Robert Elliot em 1982 — em que ele acusa a atividade de ser um “cavalo de tróia” da conservação da natureza — até o presente momento, em que a restauração está sendo usada em larga escala para capturar carbono na tentativa de mitigar a mudança climática, temos uma espécie não de cavalo, mas de “elefante na sala”.

Elliot questionava a própria ideia da restauração – ele propõe chamar a possibilidade de devolver um ecossistema à condição original, pré-distúrbio, de “A Tese da Restauração”. Se a restauração pudesse ter sucesso absoluto em restabelecer o ecossistema ou a paisagem, diz ele, o argumento conservacionista estaria derrotado. Enquanto o valor da natureza, num conflito ambiental relacionado com um empreendimento, é apenas um dos valores em jogo, a possibilidade de restauração faria a oposição dos ambientalistas parecer tola. Por outro lado, restaria ao ambientalismo apenas denunciar o resultado da restauração como uma natureza falsificada.

A restauração, no entanto, nem sempre é proposta como compensação: quando ela é feita para mitigar erros do passado, acidentes e mesmo crimes ambientais (aqui é importante ressalvar, desde que a restauração não sirva como atenuante para a dosagem de penas), ela pode ser benéfica. É o que o professor de Filosofia e Ciências Atmosféricas norte-americano Andrew Light define como uma “restauração benevolente”.

Compensações ambientais

No contexto brasileiro, há inúmeros exemplos de empreendimentos com impacto ambiental negativo cuja aceitação formal incluiu propostas de restauração, estimulados pelo reconhecimento na legislação ambiental brasileira de “mitigações” e “compensações” determinadas no processo de licenciamento.

Desenvolvendo o argumento de Elliot, outro filósofo norte-americano, Eric Katz, propõe que “a natureza restaurada é um artefato”. Deixando momentaneamente de lado a definição do que seria “natureza”, há duas dimensões que precisam ser abordadas para pensar esta acusação.

A primeira diz respeito à possibilidade de recuperação da forma intrínseca da natureza, incluindo o funcionamento dos ecossistemas e o retorno da biodiversidade nativa (ver, por exemplo, a ideia de “diversidade escura”). Não há técnicas atuais, por mais caras, capazes de restabelecer cada processo ecossistêmico e repor populações de cada espécie perdida do ecossistema que foi destruído, e muito da ciência publicada a respeito aponta para o papel de processos naturais, e não de ações humanas, ocorrendo no longo prazo para esta recuperação.

Isto nos leva a outra dimensão subjacente à denúncia de Katz: a escala de tempo. Por um lado, há pouquíssimos ecossistemas em restauração monitorados sistematicamente por mais que 20 ou 30 anos, limitando o nosso poder de síntese sobre os processos de longo prazo. Por outro, a aceleração da mudança climática, combinada às outras crises ambientais, sugere que focar nos ecossistemas históricos seria como mirar num alvo móvel – os sistemas naturais estão em mudança, e assim também estão os sistemas em restauração, aumentando a incerteza sobre as trajetórias. Em resumo, acompanhamos por pouco tempo as restaurações, e elas podem estar indo em direções desconhecidas.

Outro aspecto normalmente negligenciado a respeito do longo tempo que seria necessário para uma recuperação plena é o tempo pelo qual os seres humanos e não-humanos ficarão privados dos serviços ecossistêmicos que eram provisionados pelo ecossistema que foi destruído.

É uma questão interessante, apesar da visão utilitarista subjacente (em que a restauração só é feita porque pode devolver serviços, como a regulação do clima), e que se conecta com as diversas ideias a respeito do “nosso futuro comum”, ou do nosso “legado para as próximas gerações”: se a restauração realmente demorar séculos, nem filhos nem netos vão usufruir destes benefícios.

Créditos de carbono

Talvez a maior promessa da Restauração atualmente seja a de contribuir para mitigar a crise climática. Mas usar o termo mitigar neste caso pode ser enganoso. Parte das atividades de restauração ecológica se justifica por ser positiva para a biodiversidade ou por benefícios locais (proteção de rios e nascentes ou contenção de encostas, por exemplo). Mas há um crescente interesse, e financiamento abundante, para projetos de restauração que visam principalmente capturar carbono da atmosfera, para gerar os chamados “créditos de carbono”.

Os créditos de carbono são certificados que podem ser usados para “compensar” emissões de carbono de outras atividades econômicas. Os créditos não têm restrição geográfica (já que o “orçamento de carbono” da atmosfera é global, ou seja, os gases circulam por toda a atmosfera). Também não há restrição do tipo de emissor, o que é algo polêmico, já que admite, por exemplo, a possibilidade da “compensação” de emissões fósseis.

Um primeiro problema que se coloca é o da incerteza inerente à capacidade dos ecossistemas em restauração de manter os seus estoques de carbono no futuro, afetados por eventos climáticos extremos como secas e incêndios, ou simplesmente pela forma como a vegetação responde à fragmentação da paisagem, a extinções de espécies nativas e invasões biológicas.

Outra questão a se ressaltar é que, quando um crédito de carbono oriundo de restauração é usado para “compensar” emissão baseada em queima de combustível fóssil, um problema fundamental nos é apresentado: essa “solução” desestimula a adoção de medidas efetivas para mitigar a crise climática.

Mesmo carbono contabilizado duas vezes

Quando uma árvore cresce e estoca carbono numa floresta em restauração, ela vai capturar aproximadamente a mesma quantidade de carbono de outra árvore que existiu ali antes de haver o desmatamento, porque há um limite natural para esta estocagem, determinado por solo e clima. Ou seja, a restauração “pegaria de volta” o carbono liberado no mesmo local, quando houve o desmatamento.

No entanto, quando este carbono aprisionado na madeira da árvore origina um crédito, o detentor do crédito pode usá-lo para compensar emissões de carbono fóssil. Neste caso, o comprador usa o certificado como alternativa à redução ou eliminação da queima de combustível fóssil nas suas atividades. É fácil concluir que esta seria uma situação do tipo “cobrir um santo para descobrir outro”, uma vez que apenas uma das fontes de emissão (ou o desmatamento anterior à restauração, ou a queima de fósseis) será compensada pelo carbono capturado na restauração.

A aceitação dos créditos de carbono oriundos de restauração para compensar emissões de combustíveis fósseis, portanto, pode ser vista como um mecanismo que desestimula a adoção de medidas efetivas para mitigar a crise climática, o que remete a algumas das preocupações com a “tese da restauração” externadas por Elliot.

Uma das formas com que pessoas e instituições buscam legitimar o uso de créditos originados em restauração para compensar emissões feitas alhures é a verificação de adicionalidade – o quanto aquela captura de carbono não ocorreria sem a atividade de restauração. Em linhas gerais, haveria adicionalidade quando a captura de carbono da atmosfera (neste caso, por meio da restauração) não ocorreria nem espontaneamente, nem forçada por outros fatores, como a aplicação da lei.

É evidente que a adicionalidade não resolve o dilema do cobertor curto, porque mesmo que a restauração promova uma captura de carbono que não ocorreria sem esta atividade, ela não vai poder capturar carbono suficiente para retirar da atmosfera tanto as emissões da degradação anterior da área (desmatamento) quanto aquelas oriundas de outras fontes que o comprador do crédito desejar.

O dilema da Restauração Ecológica

Mais do que nunca, a intensificação da crise ambiental e o protagonismo da Restauração Ecológica traz para cientistas e restauradores um dilema existencial. Como trabalhar para melhorar a restauração, e ser otimista ao divulgar avanços na ciência e na técnica, sem permitir que isto contribua para relaxar os controles sociais, levando a mais destruição de habitat e à continuidade da queima de combustíveis fósseis?

Avanços no conhecimento sobre espécies e ecossistemas, e técnicas como as Soluções Baseadas na Natureza são evidências de que a Restauração Ecológica ainda pode melhorar bastante, mas não vai operar milagres, como compensar ao mesmo tempo o carbono de hoje e o de milhões de anos atrás.

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