No final de outubro, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que garante às mulheres licença remunerada de até dois dias consecutivos, em caso de sintomas debilitantes causados pela menstruação. O projeto, da deputada Jandira Feghali (PC do B-RJ), inclui essa previsão na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e estende o direito a estagiárias e empregadas domésticas.
A proposta exige a apresentação de laudo médico sobre a condição clínica que impeça, temporariamente, o exercício da atividade profissional. Para entrar em vigor, o texto ainda precisa passar pelo Senado, mas a aprovação pelos deputados representa um avanço significativo.
Uma das principais causas de dores incapacitantes durante a menstruação é a endometriose, caracterizada pelo desenvolvimento e crescimento fora do útero de tecido que reveste o interior do órgão. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença que acomete 190 milhões de mulheres no mundo ainda é subdiagnosticada e subtratada.
O desconforto feminino provocado por dores pélvicas foi negligenciado ao longo da história, como descrevemos no livro “Dores Femininas: a jornada humana de um médico contra a endometriose”, lançado em novembro pela Matrix Editora. O chamado Papiro de Kahun, escrito no Antigo Egito por volta de 1.825 a.C., é considerado um dos primeiros textos médicos dedicados à ginecologia. Ele mencionava o flagelo do período menstrual, mas a endometriose só seria descrita no século XIX.
Em autópsias realizadas na Áustria em 1860, o patologista Karl von Rokitansky documentou a presença, fora do útero, de tecido semelhante ao da camada interna do órgão – o chamado endométrio. Todos os meses, ele tem a função de se proliferar com o objetivo de preparar o útero para a gravidez. Caso ela não ocorra, esse revestimento se descama pela ação de hormônios e surge o sangramento menstrual.
Nos casos de endometriose, esse tecido sangra onde estiver. Na bexiga, no músculo do antebraço, no cérebro, em qualquer parte do corpo. É inadmissível que, quase dois séculos depois da descrição da doença, ainda exista tanto atraso no diagnóstico. A endometriose afeta milhões de brasileiras, mas permanece envolta em silêncio, negligência e desinformação.
Dores envoltas em silêncio
Reunimos relatos de pacientes, evidências e reflexões que apontam os impactos físicos, emocionais, profissionais e afetivos da doença. Mulheres que convivem com dores incapacitantes sentem também um medo constante de serem julgadas como fracas ou exageradas, de perder o emprego, de não conseguir manter uma vida afetiva e sexual plena.
De tanto a sociedade banalizar o sofrimento durante o período menstrual, muitas pacientes sequer se dão conta de que o incômodo poderia ser amenizado. Apesar de ser tão frequente (10% das mulheres em idade fértil têm endometriose), a doença recebe muito menos atenção do que deveria. É fundamental que os médicos toquem no assunto e valorizem as queixas relatadas.
Na maioria dos casos, o diagnóstico ocorre entre os 25 e os 35 anos, muito tempo depois dos primeiros sintomas. A principal dificuldade é a falta de acesso aos exames. A endometriose é observada por ultrassonografia transvaginal e por ressonância magnética. É fundamental fazer um preparo intestinal (dieta sem fibras e gordura e uso de laxantes) a partir da véspera do exame para que as fezes do reto não atrapalhem a visualização.
O ultrassom transvaginal depende da presença de um profissional examinador no mesmo local em que a mulher estiver, algo nem sempre possível. No caso da ressonância magnética, o radiologista pode acessar as imagens e emitir o laudo à distância. No entanto, o alto custo dos aparelhos limita a oferta desses exames.
Qualquer médico com formação em radiologia pélvica geral é capaz de identificar facilmente a endometriose de ovário. Ela se apresenta em forma de cisto, uma lesão volumosa caracterizada por uma coleção de sangue. Outros tipos de endometriose, fora do ovário, podem não ser identificados por um profissional sem um treinamento específico.
Uma política nacional de tratamento integral
A endometriose é classificada em quatro estágios: mínimo (grau I), leve (grau II), moderado (grau III) e severo (grau IV). No exame de toque ginecológico, é possível identificar graus 3 ou 4, com acometimento da porção final do intestino e do reto. Se a endometriose não for profunda, o médico não consegue perceber o problema durante a avaliação clínica. Infelizmente, isso acontece na maioria dos casos.
Quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) costuma ter mais chance de receber um tratamento adequado em unidades de saúde ligadas a instituições de ensino e pesquisa. O grande problema são as filas. A espera para conseguir uma cirurgia eletiva é longa.
O SUS oferece tratamentos clínicos e cirúrgicos para a endometriose, de acordo com o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Endometriose (PCDT), aprovado pela Portaria nº 879, de 12 de julho de 2016, mas é preciso acelerar o acesso ao diagnóstico a partir dos encaminhamentos feitos pelas unidades básicas de saúde (UBS). Segundo o Ministério da Saúde, a média entre o início dos sintomas e a confirmação da doença é de sete anos.
Em dezembro de 2024, chegou ao Senado o projeto de lei da deputada federal Dayany Bittencourt (União-CE), que propõe uma política nacional de prevenção e tratamento da endometriose com atendimento integral pelo SUS. A intenção é estabelecer uma diretriz para organizar o atendimento especializado com acompanhamento multidisciplinar.
A proposta foi aprovada pela Comissão de Direitos Humanos do Senado e segue em tramitação. Uma política pública nacional pode ser uma grande contribuição, desde que respeitado o diálogo técnico com o SUS para evitar conflitos com os marcos infralegais vigentes, o que pode gerar insegurança jurídica, engessamento e fragmentação das políticas públicas de saúde, segundo levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) sobre a atuação do Congresso Nacional no campo da saúde.
Sem a garantia de financiamento não é possível dar conta de todas as frentes necessárias ao enfrentamento da doença. Tão importante quanto investir em tecnologia é ensinar a ouvir e acolher. Em vez de diagnóstico correto e tratamento adequado, consultas de poucos minutos geram apenas pedidos de exames – uma tremenda distorção da prática profissional.





