Todos os anos, milhões de pessoas veem suas vidas mudarem em questão de minutos. Um vaso sanguíneo que leva sangue ao cérebro fica obstruído, os neurônios começam a morrer e o tempo corre. É um derrame, uma das principais causas de incapacidade em adultos. Estima-se que uma em cada seis pessoas sofrerá um destes também chamados Acidente Vascular Cerebral (AVC) na vida.
O cérebro humano é, de longe, o órgão mais complexo do nosso corpo. Sua arquitetura celular e sua organização em redes neuronais permitem funções tão sofisticadas como a linguagem, a memória ou a tomada de decisões abstratas. Mas essa mesma complexidade tem um custo: o tecido cerebral possui uma capacidade de regeneração muito limitada. Ao contrário da pele ou do fígado, os neurônios que morrem raramente são substituídos.
Por isso, as lesões cerebrais estão na origem de muitas patologias associadas ao envelhecimento, e uma das mais graves e frequentes é o AVC isquêmico, causado pela interrupção do fluxo sanguíneo em uma área do cérebro. Embora os avanços nos tratamentos de emergência tenham melhorado as taxas de sobrevivência, atualmente não existe uma terapia capaz de reparar os danos neuronais decorrentes de um AVC.
A reabilitação ajuda a recuperar parte das funções, mas em muitos casos os pacientes convivem com limitações motoras e cognitivas permanentes. Além disso, após um AVC, aumenta o risco de sofrer de depressão, demência e outras doenças neurodegenerativas. Mas isso pode mudar em breve, graças ao desenvolvimento de terapias baseadas em células-tronco.
Um novo horizonte terapêutico
Nas últimas décadas, as terapias celulares estão abrindo portas para uma nova geração de tratamentos em medicina regenerativa. Essas terapias buscam substituir ou reparar tecidos danificados, introduzindo novas células capazes de sobreviver, amadurecer e acabar desempenhando as funções que foram perdidas.
Como já foi mencionado, isso é especialmente importante em patologias que afetam o cérebro. Apesar de seu alto potencial, seu desenvolvimento é lento, pois deve se ajustar à legislação vigente em cada território e depende de grandes investimentos financeiros.
Um precedente crucial ocorreu no final dos anos 1980 no Hospital Universitário de Lund, na Suécia. Uma equipe liderada por Anders Björklund e Olle Lindvall conseguiu transplantar células-tronco neurais para o cérebro de pacientes com a doença de Parkinson. Esta doença neurodegenerativa é caracterizada pela perda progressiva de neurônios dopaminérgicos, fundamentais para o controle dos movimentos corporais.
Os resultados foram extraordinários: ao substituir os neurônios danificados, muitos pacientes recuperaram a função motora por mais de uma década. Essas experiências foram a primeira demonstração sólida de que o cérebro humano pode ser reparado usando células vivas.
Desde então, a pesquisa avançou, técnicas foram refinadas e a regulamentação europeia estabeleceu marcos rigorosos para garantir a segurança e a qualidade desses tratamentos, agora englobados na categoria de medicamentos de terapia avançada (ATMP, na sigla em inglês). Atualmente, estão sendo realizados em todo o mundo diferentes ensaios clínicos que dão continuidade ao trabalho de Björklund e Lindvall e que trazem esperança aos pacientes com Parkinson e muitas outras doenças que afetam nosso cérebro.
O desafio do AVC
Embora essa história tenha inspirado inúmeros estudos, o derrame cerebral representa um desafio diferente do da doença de Parkinson. A lesão isquêmica costuma ser mais extensa e heterogênea: não afeta apenas um tipo de célula, mas várias populações de neurônios, células gliais e também os vasos sanguíneos.
Além disso, após um transplante, não basta que as células sobrevivam no cérebro do paciente. Elas devem se integrar funcionalmente, ou seja, enviar seus axônios (as prolongações que transmitem os impulsos nervosos) e estabelecer sinapses ou conexões adequadas com os neurônios sobreviventes, passando a fazer parte dos circuitos cerebrais.
É como tentar reconstruir não apenas a estrutura de uma ponte, mas também seu tráfego: as conexões devem ser estabelecidas da maneira correta para que a informação flua. Portanto, além de adicionar novas células, o desafio no AVC consiste em reconectar o cérebro.
Engenharia genética como ponto de inflexão
É aqui que entra em jogo a engenharia genética, uma das tecnologias mais transformadoras da biologia moderna. Esta disciplina permite modificar as células para torná-las mais eficazes, mais resistentes ou mais capazes de se integrar no tecido danificado.
No nosso caso, incorporamos às células transplantadas o gene que codifica a proteína BDNF (Brain-Derived Neurotrophic Factor), um fator neurotrófico que participa no desenvolvimento do cérebro e que favorece o crescimento dos axônios e a formação de sinapses. Com isso, buscamos facilitar a integração funcional dos novos neurônios no cérebro lesionado, um passo fundamental para que o transplante não apenas preencha uma lacuna, mas restaure a comunicação neuronal.
Um debate necessário
Mas essa capacidade de manipulação genética também levanta dilemas éticos, especialmente em relação aos limites de sua aplicação e seus possíveis efeitos a longo prazo. Os primeiros transplantes em pacientes com Parkinson mencionados anteriormente, por exemplo, foram realizados com células-tronco provenientes de tecido fetal.
Hoje, graças ao trabalho do pesquisador japonês Shinya Yamanaka, Prêmio Nobel de Medicina em 2012, e sua descoberta das células-tronco de pluripotência induzida (iPS), é possível gerar células-tronco a partir das células adultas do próprio paciente. Por isso, hoje é muito frequente a geração em laboratório dessas células iPS a partir de biópsias da pele.
Assim, evita-se grande parte dos conflitos éticos relacionados ao uso de embriões e diminui-se o risco de rejeição imune. Portanto, a questão não é mais se podemos modificar células para reparar o cérebro, mas com quais critérios, sob qual regulamentação e com qual responsabilidade.
A história da medicina é feita de pequenas vitórias diante do impossível. Há apenas algumas décadas, a ideia de curar um cérebro danificado parecia um sonho inatingível. Hoje, graças à combinação de biologia, engenharia genética e medicina regenerativa, esse sonho começa a tomar forma nos laboratórios. Ainda há muitos desafios a serem resolvidos, mas cada novo avanço nos lembra algo essencial: o cérebro não só pode aprender, mas também pode ser reparado.
