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Como o BRICS atua na governança mundial descentralizada?

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Como o BRICS atua na governança mundial descentralizada?

O Rio de Janeiro sediará a Cúpula dos Líderes do BRICS nos dias 6 e 7 de julho. Para entender a importância do evento e do papel do bloco na geopolítica mundial, o The Conversation Brasil publica hoje o terceiro de uma série de artigos semanais produzidos pelo BRICS Policy Center, da PUC-Rio, que busca ampliar as informações sobre o BRICS de forma clara e acessível, contribuindo para a democratização do conhecimento sobre política mundial. Na segunda etapa, a partir de junho, a série será baseada nos eixos prioritários definidos pela presidência brasileira do BRICS em 2025, permitindo uma análise crítica dos principais temas que estruturam a agenda do grupo neste ciclo.

O século XXI tem sido marcado pela emergência de potências do Sul Global que, embora ganhem centralidade na economia internacional, continuam enfrentando obstáculos estruturais para influenciar decisivamente os principais espaços da governança global. Brasil, Índia, África do Sul e outros países emergentes continuam enfrentando obstáculos estruturais para influenciar decisivamente os principais fóruns de decisão internacional, como a ONU, o FMI e o Banco Mundial.

A assimetria da governança global tornou-se cada vez mais evidente diante da nova distribuição de poder mundial. O caso da China ilustra esse descompasso histórico: embora tenha alcançado projeção internacional significativa ao longo das últimas décadas, só passou a ocupar o assento permanente no Conselho de Segurança da ONU (CSNU) em 1971, com a transferência da representação de Taiwan para a República Popular da China.


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No âmbito das instituições de Bretton Woods, como o FMI e o Banco Mundial, a distância entre influência econômica e poder de decisão institucional também persiste. Mesmo sendo a segunda maior economia do mundo, a China segue sub-representada em termos de poder de voto no FMI — reflexo de uma governança que privilegia os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos.

A reforma de cotas do FMI aprovada em 2010, implementada apenas em 2016, elevou a participação chinesa de 3,8% para 6,08% e posicionou todos os países do BRICS entre os dez maiores votantes. Ainda assim, os Estados Unidos, com 16,51% das cotas, mantêm o poder de veto sobre decisões estratégicas, que exigem 85% de aprovação — preservando o controle decisório nas mãos das potências ocidentais.

Diante dessa assimetria persistente, os BRICS passaram de bloco reivindicatório a articulador de alternativas, criando em 2014 o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA). Essas instituições refletem a busca por maior autonomia frente às barreiras estruturais do sistema financeiro internacional e simbolizam um esforço coletivo para ampliar o espaço de ação do Sul Global fora dos marcos dominados por Estados Unidos e Europa.


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O agrupamento BRICS surgiu justamente como uma resposta à sub-representação desses países e vem, desde seu início, defendendo reformas institucionais que tornem o sistema multilateral mais inclusivo, eficaz e representativo. A agenda de reforma da ONU — e, em particular, do CSNU — esteve presente desde as primeiras cúpulas, com declarações firmes em defesa de maior participação de países em desenvolvimento.

A Declaração da Cúpula de Kazan, em 2024, marcou uma mudança sutil, mas significativa, na retórica do BRICS sobre a reforma do Conselho de Segurança da ONU, omitindo a referência nominal a Brasil, Índia e África do Sul como candidatos a assentos permanentes — uma menção que havia sido incluída na Declaração de Joanesburgo, em 2023.

Como destacam Rodriguez e Oliveira (2024), essa omissão é coerente com a entrada de novos membros e com o processo de institucionalização do agrupamento, sinalizando uma tentativa de adotar uma linguagem mais neutra e inclusiva diante de uma composição ampliada. A nova configuração do BRICS, com maior diversidade geográfica e política, exigiu ajustes discursivos que evitassem favorecimentos explícitos, buscando preservar o equilíbrio interno e acomodar diferentes sensibilidades no bloco.

Paralelamente, todos os membros originais do BRICS são também integrantes do G20, espaço que, embora informal, adquiriu importância crescente na articulação de respostas à crise econômica global. Criado em 1999 como fórum de ministros da Fazenda e presidentes de bancos centrais, o G20 foi elevado ao nível de chefes de Estado em 2008, no auge da crise financeira, tornando-se o principal espaço de coordenação econômica internacional.

Como destaca Azera (2023), aquele contexto representou uma oportunidade para que os países emergentes — e especialmente os BRICS — passassem a ter voz na reformulação da arquitetura financeira global, impulsionando uma agenda reformista voltada à democratização das instituições de Bretton Woods, à revisão das cotas do FMI e ao fortalecimento da Cooperação Sul-Sul.

Essa atuação em múltiplos espaços institucionais — como a ONU, o G20 e os próprios BRICS — evidencia a estratégia descentralizada de engajamento adotada pelos países do grupo. O diagrama a seguir ilustra visualmente a sobreposição entre os membros do BRICS, do G20 e do Conselho de Segurança das Nações Unidas, destacando as intersecções estratégicas entre essas instâncias e a complexa geometria da governança global contemporânea:

Sobreposição de membros do BRICS, G20 e Conselho de Segurança das Nações Unidas

/ Elaborado pelos autores

Entretanto, esse consenso inicial do BRICS no G20 foi se fragmentando com o aprofundamento das tensões sino-americanas e o isolamento russo após a anexação da Crimeia em 2014. A ausência de Xi Jinping na Cúpula de Nova Déli, em 2023, simbolizou essa reconfiguração: além de expressar o descontentamento chinês com a ordem global vigente, também foi interpretada como uma tentativa de conter o protagonismo indiano como “porta-voz” do Sul Global, especialmente diante do recrudescimento das tensões sino-indianas — marcadas por disputas territoriais na fronteira do Himalaia e por uma crescente competição por influência regional na Ásia.

A Rússia, por sua vez, também reduziu significativamente sua participação, sobretudo pela impossibilidade de Vladimir Putin comparecer às Cúpulas do G20, em razão da condenação recente pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra relacionados à invasão da Ucrânia.

Em contrapartida, durante a presidência brasileira do G20 em 2024, a China retomou seu engajamento no fórum. Sua presença no encontro do Rio de Janeiro sinalizou, ao menos simbolicamente, a importância atribuída ao espaço como arena de articulação multilateral.

Nesse contexto, o Brasil tem reiterado, no âmbito do G20, uma identidade diplomática de ponte e mediador entre blocos, buscando equilibrar interesses entre países desenvolvidos e em desenvolvimento e resistindo a classificações binárias. Já no BRICS, por outro lado, o país atua de forma mais afirmativa como liderança regional e representante do Sul Global, defendendo reformas estruturais na governança internacional e promovendo uma ordem multipolar baseada no multilateralismo e na inclusão.

Registros de votação do BRICS em resoluções da ONU

Fonte: Elaboração própria a partir de Organização das Nações Unidas, s.d.

Embora as divergências permaneçam — como no caso do Brasil, que votou pela retirada das tropas russas da Ucrânia, em dissenso com seus pares originais que se abstiveram e a Rússia que votou contra —, observa-se um padrão de convergência que aponta para a construção de um campo discursivo comum.

A resposta dos BRICS à guerra em Gaza tem funcionado como um eixo de coesão política que reforça a legitimidade do grupo como voz crítica à ordem internacional. Apesar das variações — como as posturas mais cautelosas da Índia —, prevalece a defesa do cessar-fogo, do direito internacional e da solução de dois Estados como base de um posicionamento comum. Como destaca Raul Raho (2023), a Palestina permanece um símbolo central no imaginário político do Terceiro Mundo, ativando referências históricas de solidariedade anti-imperial. Nesse sentido, o engajamento dos BRICS com a causa palestina contribui para renovar os vínculos entre o grupo e as lutas históricas do Sul Global.

Nesse contexto, embora a presidência brasileiro do BRICS esteja sendo pressionada por uma agenda global sobrecarregada — com sua cúpula prevista para ocorrer em meio a um calendário apertado entre o G20 e a COP30 —, é fundamental compreender as conexões e especificidades entre esses diferentes fóruns.

A ONU, apesar da paralisia em áreas como segurança e paz, continua sendo reconhecida pelos próprios BRICS como a principal arena internacional para a promoção da paz, do desenvolvimento sustentável e da cooperação multilateral, a exemplo do campo da governança climática, cuja centralidade se reforça com a realização da COP30.

O G20, por sua vez, consolidou-se como espaço de articulação econômica em escala global e, de forma inédita, a troika no momento da presidência brasileira foi inteiramente composta por países do BRICS: Índia (presidência em 2023), Brasil (presidência em 2024) e África do Sul (presidência em 2025), o que potencializou uma oportunidade histórica de coordenação política e convergência de agendas.

Já os BRICS operam como uma plataforma estratégica para o Sul Global, articulando propostas que não apenas contestam a ordem vigente, mas oferecem alternativas concretas. A iniciativa de intensificar o comércio em moedas locais, por exemplo, aponta para uma estratégia de autonomia financeira que ultrapassa a lógica de influência simbólica e entra no terreno da transformação material das estruturas de poder econômico.

Nesse contexto, a Cúpula do BRICS em 2025 sinaliza a expectativa de um avanço importante: pela primeira vez, os países BRICS devem publicar uma declaração específica sobre mudanças climáticas, conectando-se diretamente à agenda da COP30. Essa movimentação indica que, apesar das críticas sobre fragmentação e sobreposição de fóruns, há uma crescente articulação estratégica e descentralizada dos BRICS — conectando agendas diversas e estruturando respostas sistêmicas aos desafios globais, da transição energética à reforma da governança financeira.


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