Regular as Big Techs pode levar à censura da Bíblia no Brasil? Tony Blair estaria silenciosamente promovendo a IA da Oracle no Sul Global? Quais políticos estão fazendo lobby em nome de Mark Zuckerberg ou Jeff Bezos no mundo?
Já sabemos que a concentração de dinheiro e poder das Big Techs, somada a algoritmos hermeticamente fechados, deixa um rastro de vítimas que abrange do acesso à informação confiável aos recursos naturais. Ainda assim, pouco se fala sobre a força que sustenta o domínio político e econômico das gigantes da tecnologia: o lobby.
Segundo seu relatório financeiro, a Alphabet, dona do Google, teve uma receita de US$ 350 bilhões em 2024, quase o equivalente ao PIB do Chile. No ano passado, a Amazon amealhou US$ 638 bilhões em vendas, quase um terço do PIB do Brasil.
Com tanto dinheiro, o poder de barganha das Big Techs é significativo em regiões menos desenvolvidas. Em lugares como o Brasil, o lobby não é regulamentado, o que torna mais difícil rastrear essas ações e medir o quanto influenciam leis aprovadas no Congresso.
“Deputados me mandaram mensagens relatando ameaças físicas e pelas redes sociais (…) As Big Techs ultrapassaram todos os limites da prudência”, disse o então presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), em 2023, quando o Congresso tentava aprovar o Projeto de Lei 2630, para regular as gigantes da tecnologia. O texto ficou conhecido como PL das Fake News.
Lira prometeu responsabilizar as Big Techs pelo que definiu como “ato quase de horror na vida dos deputados na semana que antecedeu a votação.” Diante da pressão, reconstituída minuciosamente em uma das mais de 20 matérias da série investigativa A Mão Invisível das Big Techs, o projeto acabou engavetado.
A influência do lobby das Big Techs motivou a Agência Pública, do Brasil, a se unir ao Centro Latinoamericano de Investigación Periodística (CLIP) para liderar uma investigação transnacional inédita. A Mão Invisível das Big Techs reuniu 17 organizações jornalísticas de 13 países — do México à Austrália — para tentar compreender o poder dessas corporações no mundo atual.
Bases de dados sistematizam relação entre lobby e política
Na Europa, Larry Ellison, cofundador e CEO da Oracle, doou US$ 130 milhões entre 2021 e 2023 ao Tony Blair Institute (TBI). “Quando o assunto é política tecnológica, o papel do TBI é entrar em economias em desenvolvimento e vender as tecnologias de Ellison. Oracle e TBI são inseparáveis”, disse um ex-assessor sênior do Reino Unido, uma das 29 fontes entrevistadas para a reportagem sobre o instituto.
Quando o Partido Trabalhista, liderado pelo premiê Keir Starmer e do qual Blair foi uma das principais lideranças, voltou ao poder em 2024, funcionários do TBI passaram a ocupar cargos diretos no governo, enquanto recebiam salário do TBI. Nos Estados Unidos, Ellison foi chamado por Donald Trump de “CEO de tudo”, após o retorno do republicano à Casa Branca, em 2025.
As doações de Ellison ajudaram o TBI a ter quase mil funcionários em pelo menos 45 países. A receita do instituto no último ano fiscal foi de cerca de US$ 145,3 milhões. Um ex-funcionário disse que a enxurrada de dinheiro tornou a cultura interna “tóxica ao extremo”, enquanto outros descreveram um otimismo cego em relação à IA, que empurra os limites do lobby em favor da Oracle.
Na Etiópia, à beira de uma guerra civil em 2020, o TBI trabalhava em uma proposta de política pública de IA que defendia a introdução de carros autônomos. O TBI afirmou aos jornalistas da investigação que não defende os interesses comerciais da Oracle. A Oracle e a Fundação Larry Ellison se recusaram a comentar.
Mas Tony Blair não é o único ex-chefe de governo a atuar em favor de uma gigante da tecnologia.
No Brasil, o Google contratou o ex-presidente Michel Temer (2016–2019) para fortalecer seu lobby contra a regulação. Em 2023, quando o Congresso tentou votar o PL das Fake News, executivos do Google e do Telegram foram investigados pela Polícia Federal por pressionar parlamentares a votarem contra o texto. Em nome do Google, Temer atuou como intermediário nas negociações durante todo o processo.
Enquanto isso, as Big Techs também se aliaram à extrema direita para barrar os esforços pela regulação. No Congresso, deputados conservadores difundiram a ideia de que trechos da Bíblia seriam proibidos no Brasil com a regulação. O documento que fabricou essa falsa conexão foi idealizado por uma lobista da Meta e distribuído por uma entidade de lobby que representa Amazon, Meta, Google, Kwai e TikTok.
Os críticos do projeto também organizaram manifestações em defesa da liberdade de expressão. Uma delas aconteceu no Aeroporto de Brasília. Mas a investigação descobriu que havia fortes indícios de que o protesto estava ligado a entidades de lobby.
Esta prática, conhecida como Astroturfing, foi uma das quase três mil ações de lobby catalogadas em um painel de dados sobre dez países e a União Europeia entre 2019 e 2025. O Astroturfing consiste em criar movimentos supostamente orgânicos, mas, na verdade, planejados e financiados por grupos com interesses próprios. Já a contratação de Temer e outros ex-agentes públicos para fazer lobby configura a prática chamada de Revolving door, a porta-giratória pela qual agentes públicos saem de instituições governamentais e entram como lobistas em empresas privadas.
Além da catalogação das ações de lobby, o projeto também compilou outras quatro bases de dados: projetos de lei (801); processos promovidos por ou contra as empresas de tecnologia (315); agentes públicos (2.508) que assinam os projetos de lei listados ou que participam das ações de influência; funcionários ou representantes das empresas de tecnologia (1.516).
No painel, é possível ver que, no Brasil, quem mais contrata ex-agentes públicos é a Meta e que a maioria dos projetos de lei no país relacionados a Big Techs versa sobre regulação de conteúdo e inteligência artificial. A metodologia e as fontes das bases de dados podem ser encontradas aqui.
Jornalismo no rastro de vítimas do lobby
O lobby também intervém no uso de conteúdo noticioso pelas Big Techs, que necessitam do jornalismo para treinar algoritmos, IA e redes sociais. Meta e Google, em particular, montaram uma espécie de manual para barrar remuneração ao jornalismo no Canadá, na Austrália e no Brasil.
A estratégia inclui estreitar laços com a imprensa, promover eventos luxuosos, firmar acordos privados com grandes veículos (“dividir para conquistar”) e colocar a opinião pública contra a mídia. Em qualquer país que tentou legislar sobre a relação entre sites de notícias e plataformas digitais, Richard Gingras, ex-vice-presidente de notícias do Google, aparecia para argumentar que as leis eram equivocadas e que a Alphabet defende uma internet livre.
Sua presença em diversos países revela a dimensão da influência do Google. Somente no primeiro semestre de 2023, ele conversou com jornalistas brasileiros em um evento fechado em São Paulo, estampou sete monitores em depoimento a um comitê parlamentar no Canadá e discursou para jornalistas em Taipei.
“Eu não chamaria de ‘manual’. Este é um termo muito estruturado. Mas não somos completamente estúpidos. Se você é agredido com um porrete várias vezes, você aprende a se esquivar”, disse Gingras em entrevista para a série A Mão Invisível das Big Techs.





