O The Conversation Brasil publica regularmente artigos em parceria com a revista FCW Cultura Científica, da Fundação Conrado Wessel, instituição de fomento à divulgação científica brasileira e uma de nossas apoiadoras. A terceira série de publicações trata dos temas que estão em debate na COP 30, em Belém. Neste artigo, o ecólogo e pesquisador David M. Lapola fala sobre temido e cada vez mais próximo ponto de não-retorno na Amazônia, e explica o experimento que investigará como o aumento da concentração de CO₂ atmosférico e as mudanças climáticas afetarão a floresta e sua biodiversidade.
A Amazônia ocupa hoje o centro das incertezas científicas sobre as mudanças climáticas. Questionamentos sobre o impacto do aumento da concentração de CO₂ atmosférico na floresta e sua biodiversidade e até que ponto esse processo pode aproximar o ecossistema de um tipping point (ponto de não retorno, em que o colapso seria irreversível) precisam ser respondidos. Foi justamente para investigar em profundidade essas questões que foi criado o AmazonFACE, um programa de pesquisa científica sem precendentes, em desenvolvimento desde 2015 em parceria entre Brasil e Reino Unido, que agora está em fase final de implementação e deve começar a operar ano que vem. Quando em funcionamento, o projeto conseguirá observar, em condições reais de floresta madura, como a Amazônia responderá ao aumento projetado de CO₂ para as próximas décadas.
O eixo central do programa é um experimento de campo inédito, que expõe uma área de floresta a níveis elevados de CO₂, simulando um cenário previsto para o futuro. O projeto está sendo implantado a cerca de 60 quilômetros ao norte de Manaus, em área de pesquisa do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Ali, 96 torres metálicas dispostas em 6 círculos de 30 metros de diâmetro, com 35 metros de altura, liberam ar enriquecido com dióxido de carbono, elevando a concentração em cerca de 200 partes por milhão (ppm) — aproximadamente 50% acima dos níveis atuais. A estrutura permitirá acompanhar, em tempo real, as respostas fisiológicas e ecológicas da floresta a essas condições.
Coordenado pelo Inpa e pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o programa conta com apoio do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, do governo do Reino Unido, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Desde sua concepção, o AmazonFACE foi idealizado como uma iniciativa nacional, sendo que a maior parte da equipe — formada por cerca de 150 pessoas — é brasileira. Esse protagonismo diferencia o projeto de outras grandes pesquisas realizadas na Amazônia, tradicionalmente lideradas por instituições estrangeiras.
Simulacões apontam grandes aumentos de CO₂ na floresta
Nas últimas duas décadas, simulações computacionais climáticas e de vegetação apontaram que, em cenários de mudanças climáticas severas (com temperaturas mais altas e forte redução das chuvas), a Amazônia pode perder o “envelope climático” que sustenta a floresta como a conhecemos. Nessas condições, o ambiente passaria a favorecer uma vegetação mais seca, de menor porte e maior sazonalidade, aproximando-se de uma floresta seca ou de uma savana.
Ao mesmo tempo, os modelos indicam que o aumento da concentração de CO₂ atmosférico pode exercer um efeito fertilizante, estimulando o crescimento da vegetação e, potencialmente, compensando os efeitos negativos da seca e do aquecimento. Isso ocorre porque o CO₂ é o principal insumo da fotossíntese e, em teoria, sua abundância poderia ampliar a produtividade das plantas, favorecer o acúmulo de biomassa e aumentar o sequestro de carbono nos troncos e raízes.
Ainda assim, persiste uma grande incerteza: não sabemos se esse efeito se manifesta em florestas tropicais maduras, por exemplo, qual sua intensidade nem por quanto tempo ele se sustentaria. Embora esteja presente em modelagens, faltam evidências empíricas robustas. É nesse ponto que o AmazonFACE se torna crucial: pela primeira vez, será possível testar essa hipótese em escala real, dentro da própria floresta, acompanhando de forma direta como a vegetação amazônica reage ao aumento de CO₂.
Essa fertilização por CO₂ seria um tipo de resposta fisiológica direta das plantas ao aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera. Como o CO₂ é o principal insumo da fotossíntese, teoricamente espera-se que a sua elevação aumente a produtividade das plantas, favorecendo o crescimento vegetal e o acúmulo de biomassa. Esse processo também implicaria maior sequestro de carbono pelas árvores, já que parte do gás carbônico capturado do ar é armazenado em compartimentos estáveis, como os troncos.
Isso poderia contribuir positivamente para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. No entanto, ainda não sabemos com certeza se esse efeito ocorre de fato nas condições de uma floresta tropical como a Amazônia, nem qual é a sua magnitude ou por quanto tempo ele se manteria.
Nesse cenário, o AmazonFACE permitirá observar diretamente como a vegetação amazônica reage ao aumento de CO₂, ajudando a resolver uma das grandes incertezas da ciência do clima.
A equipe de pesquisa irá monitorar praticamente tudo que for possível em cada um dos seis anéis criados, desde a fotossíntese no topo das árvores até a dinâmica das raízes no subsolo, pois o efeito de fertilização pode se manifestar em diferentes partes do ecossistema. Para acessar a copa das árvores e medir diretamente as folhas e seus processos fisiológicos, serão utilizados guindastes especiais – os primeiros do tipo instalados na Amazônia para fins científicos. Esse nível de detalhamento permitirá um olhar inédito sobre as respostas da floresta à elevação do CO₂ atmosférico e variações climáticas.
O experimento se encontra na fase final da construção. A estrutura das torres já está pronta – elas terão 35 metros de altura, o suficiente para ultrapassar a copa das árvores e liberar, por meio de tubulações, ar enriquecido com dióxido de carbono. A expectativa é iniciar o experimento no primeiro semestre do ano que vem, possivelmente em abril, ao final da estação chuvosa, o que nos permitiria começar o monitoramento no início de um novo ciclo biológico da floresta.
Projeções mais confiáveis e realistas
Desde 2015, estão sendo coletados dados na região onde será realizado o experimento, para compreender como a floresta funciona antes da intervenção com CO₂ elevado. E também foram feitas pesquisas com um tipo de estufa (câmaras de topo aberto) voltadas para árvores de até 3 metros de altura para monitorar seu comportamento durante dois anos.
Nesse período, observamos indícios de resposta ao aumento de CO₂. As plantas tenderam a ampliar a área foliar, possivelmente para captar mais luz, e foram observadas alterações na morfologia das raízes – indicando uma busca maior por nutrientes, especialmente fósforo, que é escasso em grande parte da Amazônia. O fósforo é essencial para a construção de biomassa e o crescimento das plantas. Mas esse foi apenas um estudo preliminar, limitado à vegetação de pequeno porte.
Quando as árvores ultrapassaram os 3 metros, não foi mais possível continuar o monitoramento com a mesma metodologia. O que realmente se busca entender, porém, são os efeitos em nível de ecossistema – especialmente nas árvores maduras e em sua interação com o ambiente. E é isso que o experimento AmazonFACE permitirá investigar a partir de 2026.
Além disso, um dos principais objetivos do AmazonFACE é melhorar os modelos computacionais para prever o futuro da Amazônia, sobretudo no que diz respeito ao tipping point. A hipótese do ponto de inflexão ecológica foi formulada com base em simulações feitas por modelos computacionais que, à época, não conseguiam representar adequadamente a complexidade da floresta tropical.
O tipping point amazônico é o único já identificado em florestas tropicais, mas está interligado a outros pontos de inflexão globais, como o colapso da circulação oceânica do Atlântico, a desertificação do Sahel e o derretimento das geleiras da Groenlândia.
Alterações nos ciclos de El Niño e La Niña, mais frequentes e intensos, já afetam as chuvas na Amazônia, provocando secas e cheias extremas.
O gelo que derrete no Ártico modifica a circulação termohalina do Atlântico, aquecendo a região equatorial e resfriando o norte, o que também interfere nas precipitações amazônicas, como nas secas de 2005 e 2010. Esses fenômenos mostram que os tipping points formam um sistema global interdependente, em que a transição de um pode acelerar o colapso de outros, tema que será abordado pela primeira vez em um capítulo específico do próximo relatório do IPCC.
A hiperdiversidade biológica da Amazônia
O Carbon and Ecosystem functional Trait Evaluation (CAETÊ) foi desenvolvido justamente para ajudar a preencher essa lacunade conhecimento sobre o futuro da floresta Amazônica. Ele integra uma nova geração de modelos ecológicos, mais refinados do que os tradicionais utilizados em projeções climáticas globais. Esses modelos mais antigos costumam agrupar as plantas em poucas categorias genéricas. No caso da Amazônia, é comum considerar apenas um ou dois tipos funcionais, como árvores de folhas largas perenes ou de floresta sazonal, ignorando a enorme diversidade biológica e funcional da floresta, o que limita a precisão das simulações.
O CAETÊ propõe uma abordagem diferente. Em vez de reduzir a floresta a poucas categorias, ele incorpora uma diversidade muito maior de estratégias funcionais das plantas – como diferentes formas de crescimento, padrões de alocação de biomassa, respostas à luz, tolerância à seca. Isso permite representar melhor a riqueza de espécies e estratégias ecológicas da Amazônia e compreender como essa diversidade influencia o funcionamento do ecossistema.
É importante destacar que o CAETÊ não foi criado apenas com o objetivo de prever o futuro da floresta, mas de entender melhor seu funcionamento atual. Essa compreensão mais profunda é fundamental para produzir projeções mais confiáveis e realistas em cenários de mudanças climáticas. Ao combinar conhecimento ecológico avançado, diversidade funcional e dados empíricos gerados em campo – como os que virão do AmazonFACE –, o CAETÊ representa um avanço significativo na modelagem de ecossistemas complexos.
Definitivamente, precisamos de mais projetos de pesquisa neste tema específico do tipping point amazônico, não só pela biodiversidade, estoques de carbono, disponibilidade de água, mas também pela diversidade cultural das mais de 30 milhões de pessoas que vivem na região.
Para avançarmos rapidamente nesse assunto, são necessários investimentos substanciais e estruturados – recursos vultosos que possibilitem a formação de forças-tarefa multidisciplinares, capazes de atuar de forma integrada e contínua. Esses financiamentos, que serão objeto de negociação na COP30, especialmente entre os países do Sul Global e do Norte, são fundamentais para que possamos enfrentar os desafios que a Amazônia e outros ecossistemas vulneráveis apresentam. Sem esse suporte robusto, o avanço científico e a implementação de políticas eficazes estarão comprometidos.
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