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Complementaridade energética: um conceito que não pode mais ficar restrito ao meio acadêmico

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Complementaridade energética: um conceito que não pode mais ficar restrito ao meio acadêmico

Na segunda metade dos anos noventa, certos setores do meio acadêmico começaram a estudar as potencialidades do conceito de complementaridade energética como alternativa para um melhor aproveitamento dos recursos energéticos renováveis disponíveis. Mas a questão energética, à época, não apresentava as mesmas preocupações atuais, e o panorama era consideravelmente mais simples. O que contribuiu para relativizar a importância do tema.

Hoje, porém, as mudanças climáticas, o crescimento populacional e o aumento das expectativas por qualidade e confiabilidade no suprimento de energia transformaram a complementaridade num conceito central e altamente relevante na discussão global sobre a necessidade cada vez mais urgente de transição das matrizes energéticas em todo o mundo, e sua importância para o futuro da humanidade.

Mas o que é complementaridade energética?

A ideia é simples. Por exemplo: no sul do Brasil, mesmo com estações climáticas pouco definidas, temos padrões sazonais distintos: o verão, marcado por céu aberto e menos chuvas, e o inverno, mais chuvoso e nebuloso. Isso sugere uma complementaridade natural entre fontes renováveis, como a energia solar fotovoltaica e a energia hidrelétrica.

Um sistema híbrido poderia utilizar majoritariamente a energia hidrelétrica durante o inverno e a solar no verão, equilibrando as variações sazonais e utilizando armazenamento de energia – mesmo que de modo restrito – para balancear o sistema. Essa dinâmica de complementaridade, quando bem entendida e aplicada, pode otimizar a eficiência e a confiabilidade do sistema energético.

Contudo, os padrões de complementaridade não são universais. Cada região possui características distintas, e é necessário mapear os fenômenos associados, identificar onde essa combinação de recursos é viável e avaliar as limitações. Foi essa necessidade de compreensão que me levou a dedicar minha tese de doutorado ao tema, em 2001, focando na complementaridade entre recursos hídricos e solares no Rio Grande do Sul. Desde então, a ideia de complementaridade energética tem evoluído, ampliando seu alcance e ganhando espaço em debates técnicos e acadêmicos.

Para que serve o conceito?

A complementaridade entre recursos renováveis é muito mais que uma curiosidade acadêmica. Trata-se de uma ferramenta essencial para maximizar o uso de energias renováveis e construir sistemas energéticos mais resilientes e sustentáveis. Por exemplo, embora o sistema interligado já aproveite complementaridades em sua operação, essas interações precisam ser conhecidas e reconhecidas pelo público geral. Afinal, as pessoas precisam entender de onde tiramos energia, como a utilizamos e por que é importante diversificar e planejar a matriz energética.

Estudos recentes reforçam a relevância do conceito de complementaridade energética e demonstram sua aplicabilidade em diferentes contextos ao redor do mundo. O review publicado em 2020 pela Solar Energy mostra que as interações entre fontes de energia, como solar e hidrelétrica, são promissoras para melhorar a eficiência e a confiabilidade de sistemas híbridos.

Esse review destaca a importância de compreender as complementaridades em regiões com variações sazonais marcantes, oferecendo insights baseados em mapeamentos já realizados em várias partes do mundo. Os pesquisadores brasileiros ocupam uma posição de destaque entre os pesquisadores dessa área, pela quantidade de estudos disponíveis sobre o tema e pelos recursos disponíveis ao longo do território brasileiro.

Além disso, o livro Complementarity of Variable Renewable Energy Sources aprofunda essas discussões ao apresentar estudos de grupos de pesquisa que surgiram ao redor do mundo, muitos deles inspirados pelos resultados publicados a partir da minha tese de doutorado. O artigo publicado na Renewable Energy em 2008 abriu caminho para a quantificação e o mapeamento da complementaridade energética, evidenciando o papel pioneiro do Brasil em estudos nessa área e sua influência na formação de novas linhas de investigação.

Complementaridade entre energias eólica e solar no litoral da região Nordeste do Brasil. Em azul, as áreas com as menores complementaridades, e, em vermelho, as áreas com as melhores complementaridades.

O estudo que compõe o capítulo 5 do livro citado acima apresenta um estudo exploratório sobre o emprego de energia solar e energia eólica ao longo do litoral da região Nordeste do Brasil, considerando tanto energia eólica em potenciais sobre o continente quanto turbinas eólicas instaladas offshore. A análise com velocidades a 100 m de altura, por exemplo, revelou que aproximadamente 40% da área apresenta complementaridade energética próxima da ideal, sendo 5% offshore e 35% onshore.

Além disso, foi percebido que em alguns dos locais identificados ainda não há a exploração desses recursos renováveis e que os mesmos encontram-se próximos à malha elétrica existente, favorecendo sua possível implementação. A figura acima é parte dos resultados apresentados nesse texto. Regiões com maior complementaridade proporcionarão sistemas energéticos mais eficientes, com menores custos específicos na energia entregue aos consumidores.

Onde esse conceito pode ser mais útil?

A complementaridade energética é particularmente útil em contextos que exigem inovação e adaptação local. Em comunidades isoladas, onde os sistemas interligados não estão disponíveis, os sistemas híbridos podem garantir um fornecimento contínuo e eficiente de energia. No caso do Rio Grande do Sul, a combinação de hidrelétricas de pequeno porte com potencial solar fotovoltaico moderado oferece uma alternativa promissora para diversificar a matriz energética e reduzir a dependência de combustíveis fósseis.

Além disso, essa abordagem contribui com benefícios econômicos e ambientais. Sistemas híbridos podem reduzir os custos específicos de geração de energia, minimizar os impactos ambientais e aumentar a resiliência frente a eventos climáticos extremos. Não menos importante, a complementaridade promove o diálogo entre diferentes setores — acadêmico, industrial e governamental — incentivando parcerias para o desenvolvimento de políticas públicas e tecnologias que integrem fontes renováveis.

Um artigo publicado pela Energy em 2018, por exemplo, explora o emprego do conceito de complementaridade para melhorar a confiabilidade de sistemas híbridos. Em outro artigo, publicado em 2021, o armazenamento hibrido em baterias e em usina hidrelétrica reversível é estudado para melhorar a integração de um sistema híbrido de energia com vários recursos renováveis diferentes. Os resultados deste artigo de 2021 apontam custos de energia entre €0.047/kWh e €0.095/kWh, próximo de valores reais e próximo de valores presentes na literatura.

Em resumo

O conceito de complementaridade energética não deve permanecer restrito aos meios acadêmicos. Ele é uma ferramenta valiosa para enfrentar os desafios energéticos do futuro de forma sustentável e eficiente. Ao levar o tema para além das universidades e laboratórios de pesquisa, podemos inspirar mudanças práticas e inovadoras. Afinal, cada vez mais, a complementaridade entre fontes como solar, eólica e hidrelétrica demonstra ser uma oportunidade única de repensar nosso modo de consumir e produzir energia.

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