Nos intercâmbios entre África e Ásia, a literatura quase não é mencionada como um vetor para descobrir o outro. Entretanto, alguns escritores africanos e asiáticos encontram parte de sua inspiração nas culturas, tradições, personagens e acontecimentos históricos do continente oposto. Alguns também escrevem sobre a presença de africanos na Ásia e de asiáticos na África, e as traduções literárias se multiplicam em ambos os sentidos.
O arquipélago das Comores localiza-se no oceano Índico, entre Moçambique e Madagascar, e é um lugar privilegiado de encontros entre África e Ásia. A cultura comorense está vinculada ao suaíli pela proximidade linguística e pelas numerosas tradições em comum. Por outro lado, a cultura persa marcou fortemente o suaíli e está presente até os dias de hoje em áreas tão diversas, como arquitetura, gastronomia e religião.
Touhfat Mouhtare, foto de Wissat Daoud usada com autorização.
Touhfat Mouhtare é uma escritora comorense que viveu em vários países africanos antes de se mudar para a França. É autora de quatro livros: Âmes suspendues, Vert cru, Le feu du milieu e o mais recente Choses qui arrivent.
A Global Voices a entrevistou para percorrer as pontes literárias entre o seu país e a Ásia Central. A entrevista se deu por e-mail após um encontro em julho, durante o festival literário da Europa Central, MAČ, em Ostrava, na República Checa.
Filip Noubel (FN): A cultura comorense é híbrida por excelência. Onde e como se encontram os elementos africanos e asiáticos em Comores?
Touhfat Mouhtare (TM): Des spécialistes mènent encore des études pour déterminer qui est arrivé avant. Le plus probable est que des boutres commerciaux en provenance de la Perse, de l’Inde et du Yémen ont accosté les îles à partir du 7eme siècle, et que leurs occupants ont rencontré les habitants déjà présents, organisés en clans, originaires du Mozambique ou du bassin du Congo. Plus tard, il se peut que le pouvoir ait été cédé à des sultans et que les îles soient devenues, avec Zanzibar, une plaque tournante de l’esclavage arabe.
Toufat Mouhtare (TM): Os especialistas continuam estudando quem chegou primeiro. O mais provável é que os dhows comerciais vindos da Pérsia, da Índia e do Iêmen tenham atracado nas ilhas a partir do século VII e seus ocupantes tenham encontrado os habitantes ali presentes, organizados em clãs, originários de Moçambique ou da bacia do Congo. Mais tarde, talvez o poder tenha passado para as mãos dos sultões e as ilhas tenham se tornado, junto com Zanzibar, um centro de escravização árabe.
Foto de 1906 de Kurmanjan Data (segundo sentado à esquerda). Foto de Wikipedia, domínio público.
FN: Em seu livro Le Feu du Milieu, você faz referência a uma heroína histórica quirguiz, Kurmanjan Datka, mulher independente e líder política do final do século XIX, feito pouco comum em um romance francófono. Como foi esse encontro transcontinental?
TM: C’est ma passion pour l’astronomie à l’ère de l’âge d’or musulman qui m’a conduite à celle qu’on appelle la Reine des montagnes. Après avoir lu la biographie d’Ulugh Beg [sultan timouride du 14eme siècle, mort à Samarkand et connu pour avoir créé un catalogue astronomique] par Jean-Pierre Luminet, je me suis demandé où étaient les femmes de cette région. Le film sur Kurmanjan Datka, La reine des montagnes, qui relate le sacrifice de cette femme afin de préserver sa culture, m’a bouleversée.
TM: Minha paixão pela astronomia na época dourada dos muçulmanos me levou ao que se conhece como a ‘rainha das montanhas’. Depois de ler a biografia de Ulugh Beg (sultão timúrida do século XIV, que morreu em Samarcanda e é conhecido pelo catálogo astronômico que criou), por Jean-Pierre Luminet, me perguntei onde estavam as mulheres dessa região. O filme sobre Kurmanjan Datka, ‘A rainha das montanhas’, que narra o sacrifício dessa mulher para preservar sua cultura, me comoveu profundamente.
O filme que Touhat Mouhtare menciona está disponível no YouTube com legenda em inglês.
FN: A Ásia Central e as Comores estão relativamente distantes, entretanto você encontra pontos comuns entre essas duas partes do mundo. De que forma a Ásia Central inspira a sua escrita?
TM: L’influence de l‘Empire perse a disséminé, en effet, des mots dans les deux régions, mais aussi une certaine vision de la poésie, de la geste poétique et de la spiritualité. Je ressens une grande familiarité avec l’Asie Centrale, j’y retrouve comme une « version d’origine » de mes repères culturels personnels, dont je me sers comme matière première pour écrire.
TM: A influência do Império persa conseguiu difundir palavras em ambas as regiões, mas também uma visão da poesia, o fazer poético e a espiritualidade. Vejo muita familiaridade com a Ásia Central, lá encontro uma espécie de ‘versão original’ das minhas referências culturais pessoais, que uso como matéria-prima para escrever.
FN: O sufismo é uma tradição espiritual que une a Ásia e a África. Como essa prática se manifesta nas Comores?
TM: Elle régit la pratique de l’islam, à travers des rituels dont nous ne connaissons pas toujours l’origine. Elle infuse les échanges, la manière de se saluer : on salue les aînés, par exemple, comme les disciples saluent leurs maîtres, en accueillant leur main au-dessus des deux siennes et en prononçant la formule de respect « kwezi ». Et même si certains courants tentent de la discréditer, elle est profondément ancrée dans la langue.
TM: Ele regula a prática do islã através de rituais cuja origem nem sempre conhecemos. Permeia as relações sociais, a forma de cumprimentar: por exemplo, cumprimenta-se os mais velhos como os discípulos cumprimentam seus mestres, segurando a mão deles e pronunciando a fórmula de respeito ‘kwezi’. E mesmo que algumas correntes tentem desacreditá-la, está profundamente enraizada no idioma.
FN: O lugar da mulher que você observou na Ásia Central difere do lugar da mulher nas Comores?
TM: Je parlerais d’action des femmes plutôt que de place, puisque la notion de place renvoie à celle qu’on veut bien nous laisser, tandis que l’action dépasse cette assignation. L’action des femmes aux Comores et dans les pays d’Asie centrale que j’ai visités dans le cadre de mes recherches (Ouzbékistan, Turquie) semble converger vers une tendance séculaire : trouver, dans les espaces dans lesquels sont souvent confinées les femmes, des moyens d’expression, des manières de se moquer de l’ordre établi pour en reprendre un peu le pouvoir, et des bulles de liberté, bien que fragile mais bien présentes, en vivant dans les grandes villes. Les femmes de Tachkent, dans la variété des expériences personnelles, professionnelles et familiales qu’elles vivent, me font beaucoup penser aux femmes comoriennes. Et même si la place de l’épouse n’est pas aussi autonome en Ouzbékistan qu’aux Comores, par exemple, les récits tournent tous autour de l’acharnement masculin à ne pas lâcher certains privilèges, et de l’obstination féminine à exister. Entre les deux, les genres dits « fluides » semblent se faufiler avec la même discrétion d’un côté comme de l’autre…
TM: Eu falaria mais da ação da mulher do que de seu lugar, já que a noção de lugar se refere ao que nos deixam ocupar, enquanto a ação vai mais além dessa atribuição. A ação da mulher nas Comores e nos países da Ásia Central que visitei para as minhas pesquisas (Uzbequistão, Turquia) parece convergir para uma tendência secular: encontrar, nos espaços em que frequentemente a mulher é confinada, meios de expressão, formas de caçoar da ordem estabelecida para recuperar um pouco o poder e bolhas de liberdade, embora frágeis, mas muito presentes, vivendo nas grandes cidades. As mulheres de Tashkent, em muitas das experiências pessoais, profissionais e familiares que vivem me lembram muito as mulheres comorenses. E mesmo que o lugar de esposa não seja tão autônomo no Uzbequistão como nas Comores, por exemplo, todas as histórias giram em torno da obstinação masculina em não abrir mão de certos privilégios e da obstinação feminina em existir. Entre ambos, os gêneros ditos ‘fluidos’ parecem se infiltrar com a mesma discrição de um lado e de outro…
FN: Em Le Feu du Milieu, as duas personagens principais são duas mulheres jovens que atravessam diversos mundos. Como a narrativa feminina nos permite explorar outro potencial do romance?
TM: Il y a dans les romans d’aventure des éléments complètement absents, et pourtant bien présents dans une vie de femme : le cycle menstruel, par exemple, l’héritage émotionnel d’une lignée de femmes, la matrilinéarité. Écrire du point de vue du féminin permet, à mon sens, d’insérer une réalité qui, avec le temps, a fini par devenir invisible par nature. Un héros ne s’arrête jamais en cours de quête pour changer ses protections hygiéniques ou laisser passer une crampe abdominale, par exemple, ce qui est indispensable pour une héroïne. Le corps est très peu souvent une contrainte en soi, sans intervention extérieure. Or du point de vue féminin, le corps est lui-même un personnage par défaut, avec lequel il faut composer ; le regard qui est constamment porté sur lui finit également par en faire partie. L’ardeur de la tâche est ensuite d’arriver à transcender le sentiment d’une injustice millénaire à cet égard pour produire quelque chose de vrai.
TM: Nos romances de aventura há elementos completamente ausentes, mas que estão muito presentes na vida de uma mulher: o ciclo menstrual, por exemplo, a herança emocional de uma linhagem de mulheres, a matrilinearidade. Creio que escrever do ponto de vista feminino permite introduzir uma realidade que, com o tempo, acabou se tornando invisível por natureza. Um herói nunca para no meio de uma missão para trocar seus produtos de higiene íntima ou esperar uma cólica abdominal passar, por exemplo, o que é indispensável para uma heroína. O corpo raramente é uma limitação em si mesmo, sem intervenção externa. Entretanto, do ponto de vista feminino, o corpo é, por padrão, um personagem com o qual é preciso lidar; o olhar que recebe (esse corpo) também acaba se integrando. O desafio da tarefa consiste, então, em conseguir transcender o sentimento de uma injustiça milenar para produzir algo verdadeiro.
Para saber mais, este vídeo do festival MAČ bilingue, em francês e em checo, ouça Touhfat Mouhtare: