A transição energética é uma das pautas mais discutidas e importantes da atualidade. Em termos globais, ela depende de uma coordenação multilateral, financiamento de longo prazo e clareza normativa, além de enfrentar interesses econômicos consolidados que buscam prolongar a vida útil da matriz fóssil. Por isso, o modo como as conferências climáticas enquadram – ou silenciam – o papel do petróleo, do gás e do carvão tem impacto direto sobre a velocidade, o alcance e a justiça desse processo.
Antes, porém, de comentar os aspectos que foram discutidos e decididos sobre isso na COP 30, é interessante definir o que é uma transição energética e o que isso envolve. Trata-se do processo de substituição progressiva dos combustíveis fósseis por fontes renováveis e de baixo carbono, implicando não apenas mudanças tecnológicas, mas em transformações profundas na organização econômica, institucional e geopolítica dos sistemas energéticos.
Ela implica a reconfiguração das cadeias de produção, transporte e consumo de energia, a redefinição de políticas industriais, a reorganização de mercados e a criação de instrumentos capazes de orientar investimentos em direção a modelos mais limpos, acessíveis e sustentáveis. Ou seja, a transição energética envolve muitas mudanças.
Nos últimos três anos, as conferências internacionais do clima foram sediadas por países cuja economia depende diretamente da produção e exportação de petróleo e gás.
A COP 27, no Egito, avançou na criação de um fundo para perdas e danos, mas evitou enfrentar de maneira substantiva a redução do uso de combustíveis fósseis.
A COP 28, nos Emirados Árabes Unidos, reconheceu a necessidade de diminuir a dependência do carvão e do petróleo, porém sem estabelecer metas vinculantes, em um contexto amplamente marcado pela presença da indústria fóssil nas negociações. Essa influência foi registrada por levantamentos independentes e por reportagens internacionais que documentaram a participação direta de executivos da ExxonMobil, Saudi Aramco, Shell, BP e TotalEnergies em eventos oficiais e paralelos das conferências climáticas (INFLUENCEMAP, 2023).
A COP 29, no Azerbaijão, resultou em um acordo financeiro considerado insuficiente e manteve desafios persistentes na formulação de mecanismos efetivos de implementação que destacam a influência contínua de interesses corporativos e a fragilidade das estratégias de financiamento internacional (Wei, 2025).
Nesse mesmo período, observou-se o esvaziamento sistemático da participação da sociedade civil por meio de restrições a protestos e manifestações públicas, reduzindo a pluralidade de vozes na arena diplomática e limitando pressões por compromissos mais robustos.
A retórica da neutralidade versus a realidade
A COP 30 também se tornou histórica por razões que ultrapassaram as negociações formais: segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), cerca de 1.600 indígenas da Amazônia, provenientes dos nove países da Bacia Amazônica, deslocaram-se até Belém para participar diretamente da conferência e acompanhar as negociações climáticas.
Essa mobilização transnacional, inédita em escala e articulação, reforçou a centralidade política dos povos originários na defesa dos ecossistemas amazônicos e na denúncia dos impactos da crise climática sobre seus territórios.
A participação expressiva não se limitou a atos simbólicos. Indígenas lideraram debates, apresentaram propostas de governança territorial e denunciaram mecanismos que vêm reforçando o que muitos chamam de colonialismo verde.
São práticas climáticas que, sob a justificativa da descarbonização, ampliam pressões sobre seus territórios, seja por meio da expansão de commodities “verdes”, da mineração voltada a tecnologias de transição ou de projetos de compensação de carbono que ignoram direitos coletivos.
Em suas intervenções, lideranças reafirmaram que não há transição energética legítima se ela continuar a reproduzir as desigualdades coloniais e se não for construída sobre princípios de justiça territorial, autodeterminação e repartição equitativa de benefícios.
Dessa forma, a presença indígena na COP 30 não apenas ampliou o campo político da conferência, mas expôs com precisão as contradições entre a retórica global da neutralidade climática e a realidade vivida nos territórios.
Ambiente favorável
Depois de vários anos em que as conferências do clima foram realizadas em países diretamente vinculados à economia do petróleo, a realização de uma COP na Amazônia gerou a expectativa de uma inflexão no debate climático. Para muitos observadores, a escolha de Belém sinalizava a possibilidade de recuperar a centralidade de discussões que vinham perdendo espaço em meio à crescente influência da indústria fóssil e à redução da participação da sociedade civil.
Uma conferência sediada em um dos biomas mais estratégicos do planeta parecia oferecer condições políticas para recentralizar a agenda na urgência de transformar modelos produtivos, avaliar os limites dos mecanismos de financiamento e discutir, de forma mais transparente, os obstáculos que têm impedido avanços significativos nas políticas de mitigação e adaptação.
Nesse sentido, a COP 30 foi recebida como uma oportunidade de retomar um debate mais consistente, após três edições marcadas por avanços diplomáticos limitados, disputas assimétricas e restrições crescentes à mobilização pública. A distância dos principais centros da indústria fóssil foi interpretada como uma chance de reduzir a pressão de interesses corporativos sobre as negociações e de criar um ambiente mais favorável à consideração de evidências científicas e propostas estruturais.
Embora essa expectativa não implicasse em um consenso sobre os resultados possíveis, ela marcou a percepção de que a COP 30 poderia romper uma tendência recente de esvaziamento político e recolocar o processo multilateral em direção a uma discussão mais substantiva sobre a transição energética global.
No entanto, apesar de a COP 30 ter sido apresentada como um esforço para “restaurar a confiança e renovar a esperança na luta contra a mudança climática por meio da ciência, da equidade e da determinação política”, as escolhas textuais do documento final, denominado “Global Mutirão”, revelam decisões eminentemente políticas que preservam a atual ordem energética.
O texto reconhece que “o orçamento de carbono necessário para cumprir o Acordo de Paris está quase esgotado e vem sendo rapidamente consumido”, além de admitir que países desenvolvidos não cumpriram metas anteriores. Ainda assim, o documento evita qualquer referência explícita à redução, eliminação ou limitação do uso de combustíveis fósseis.
A ausência completa de menções a petróleo, gás ou carvão não decorre de acaso: ela expressa a capacidade de influência de Estados e corporações que dependem desses setores e que atuaram para impedir que a conferência formalizasse compromissos capazes de transformar a matriz energética global.
Essa omissão torna-se ainda mais significativa diante do diagnóstico presente no próprio documento, que afirma que manter o aquecimento em 1,5ºC exige “reduções profundas, rápidas e sustentadas das emissões globais” de 43% até 2030 e 60% até 2035.
Mesmo diante desses dados, a COP30 optou por reforçar compromissos voluntários e lançar iniciativas dependentes de cooperação futura, como o Global Implementation Accelerator e a Belém Mission to 1.5 (CONFERENCE OF THE PARTIES…, 2025, p. 5), sem criar mecanismos de responsabilização ou instrumentos vinculantes que conectem esses objetivos às transformações necessárias nos sistemas energéticos.
Omissões e consequências
A ausência explícita de “combustíveis fósseis” no documento final não é apenas um problema diplomático: ela produz efeitos concretos sobre a transição energética global. Ao evitar nomear petróleo, gás e carvão como vetores centrais da crise climática, a COP 30 enfraquece os sinais políticos necessários para orientar investimentos, regular mercados e redefinir prioridades tecnológicas. Processos de transição energética dependem de clareza regulatória, previsibilidade institucional e diretrizes internacionais que estabeleçam limites inequívocos à expansão fóssil.
Em Glasgow (COP 26), por exemplo, a simples inclusão do termo phase-down para o carvão gerou respostas imediatas. Diversos governos revisaram metas nacionais e fundos internacionais passaram a reavaliar o risco associado a ativos de carvão, produzindo uma queda perceptível no valor de mercado de empresas altamente dependentes desse combustível.
Da mesma forma, bancos multilaterais (como o Banco Europeu de Investimento) anunciaram restrições progressivas ao financiamento de projetos fósseis após COPs que explicitavam tais compromissos, reforçando a importância da linguagem internacional para orientar fluxos financeiros.
Quando a COP 30 se abstém de demarcar esses limites, abre espaço para que países e corporações aleguem incerteza normativa e justifiquem a continuidade (ou até o aumento) de projetos petrolíferos e gasíferos sob o argumento da “necessidade de segurança energética” ou da “transição gradual”.
Além disso, a ausência de termos como phase-out e phase-down retira força dos mecanismos multilaterais de pressão que historicamente permitiram cobrar maior ambição, como ocorreu quando, após 2021, a inclusão inédita do carvão no Glasgow Climate Pact passou a servir de parâmetro político para questionar o uso continuado dessa fonte altamente emissora.
Em vez de acelerar a mudança estrutural do sistema energético, esse tipo de omissão legitima a manutenção da matriz fóssil como horizonte de curto e médio prazo, retardando investimentos em renováveis, dificultando o acesso a financiamentos climáticos e produzindo um ambiente em que soluções tecnológicas são desconectadas de compromissos políticos. Assim, a COP 30 não apenas deixa de impulsionar a transição energética, mas reforça os obstáculos que historicamente têm limitado sua viabilidade e sua urgência.
A participação expressiva dos indígenas na COP 30 não se limitou a atos simbólicos. Eles lideraram debates, apresentaram propostas de governança territorial e denunciaram mecanismos que vêm reforçando o que muitos chamam de colonialismo verde: práticas climáticas que, sob a justificativa da descarbonização, ampliam pressões sobre seus territórios, seja por meio da expansão de commodities “verdes” da mineração voltada a tecnologias de transição ou de projetos de compensação de carbono que ignoram direitos coletivos. Em suas intervenções, lideranças reafirmaram que não há transição energética legítima se ela continuar a reproduzir as desigualdades coloniais e se não for construída sobre princípios de justiça territorial, autodeterminação e repartição equitativa de benefícios.
