As creches públicas não são somente uma política educacional, mas também uma política de saúde pública e de redução das desigualdades. A afirmação está amparada nos dados obtidos pelo estudo Padrões Alimentares e Matrícula em Creche: Uma Análise da Primeira Infância Brasileira. Para chegar a essas conclusões, nós estudamos a alimentação de mais de três mil crianças de 12 a 23 meses em todas as regiões do Brasil a partir de microdados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2019, conduzida pelo IBGE. As análises foram feitas em 2024 e apresentadas em 2025.
Nosso objetivo central foi comparar padrões alimentares entre aquelas com acesso às creches e aquelas que não frequentavam esses equipamentos. Para isso, construímos dois indicadores: um para medir o consumo de alimentos naturais ou minimamente processados — como frutas, verduras, arroz e feijão — e outro reunindo alimentos ultraprocessados, como doces, refrigerantes e biscoitos. Com a ajuda de técnicas estatísticas, identificamos diferenças consistentes entre os grupos e estimamos o peso de variáveis como renda, escolaridade da pessoa responsável e região do país.
Os resultados indicam que o acesso a uma creche está diretamente associado a uma dieta mais saudável para o grupo de crianças estudadas. O efeito é ainda mais agudo e importante para famílias com menor renda e escolaridade.
A presença dos ultraprocessados
As informações obtidas pelo estudo realizado pelo nosso grupo mostraram que crianças em creches mantiveram um consumo um pouco maior de alimentos ultraprocessados, independentemente do nível socioeconômico. Esse efeito, no entanto, foi menor do que o benefício observado no aumento de refeições saudáveis: as crianças que frequentam creches tiveram, em média, uma alimentação mais saudável porque consumiram mais frutas, verduras e comidas típicas do preparo caseiro. O padrão se repetiu em todas as regiões do país, mas nas regiões Norte e Nordeste esta diferença é ainda maior.
Outro achado importante é que crianças de famílias mais pobres alcançaram padrão alimentar de famílias mais ricas quando matriculadas em creche. A creche, nesse caso, funcionou como um espaço que garante acesso a alimentos de qualidade, independentemente das condições do domicílio.
O aumento do consumo dos ultraprocessados entre as crianças estudadas é um fenômeno mundial e especialmente preocupante, pois é na primeira infância que se formam os hábitos alimentares que acompanharão a pessoa até a idade adulta. Além disso, obesidade, diabetes e problemas cardiovasculares têm relação direta com o que se come desde cedo. A literatura científica mostra que a má qualidade da dieta é um dos maiores fatores de risco para doenças crônicas no Brasil e no mundo. Consequentemente, a alimentação nos primeiros anos de vida é um preditor da expectativa de vida de um ser humano.
Esse contexto tem implicações diretas na saúde pública. Obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares estão relacionadas ao que se come desde cedo, e a literatura científica aponta que a má qualidade da dieta é um dos principais fatores de risco para doenças crônicas no país e no mundo. Consequentemente, a alimentação nos primeiros anos de vida é um preditor da expectativa de vida).
Um caminho para ampliar o acesso às políticas sociais
O estudo reforça que a creche é mais do que um local de cuidado e educação. Ela também é uma ferramenta de promoção da saúde e acesso a políticas sociais. Garantir alimentação adequada nesse espaço pode atenuar desigualdades que incidem já no início da vida. Esse é, na prática, um dos maiores desafios – garantir que as crianças pequenas tenham acesso regular a refeições de qualidade. Entender como a escola e a creche interferem nesses hábitos é fundamental para desenhar políticas públicas eficazes.
Embora seja um direito, o acesso à creche no Brasil ainda é restrito. Apenas 35% das crianças de zero a três anos estão matriculadas. Já o acesso entre crianças brancas e negras é similar, mas as condições estruturais das creches são piores para os negros e nas regiões Norte e Nordeste. Nessas regiões, as crianças costumam ter menos acesso a frutas e verduras, por exemplo.
O fato de a creche ajudar a reduzir essas diferenças mostra o potencial do acesso a esse equipamento como política pública de redução de disparidades educacionais, alimentares e no acesso ao mercado de trabalho de mulheres, que tradicionalmente desempenham o trabalho do cuidado das crianças.
Além disso, os resultados do estudo destacam a importância de investir em programas que orientem a alimentação oferecida nas instituições. Refeições saudáveis e variadas podem ampliar ainda mais o impacto positivo ao longo dos anos futuros.
A mensagem é clara: ampliar o acesso às instituições, é preciso discutir a qualidade dos cardápios, estimular a compra de alimentos locais e formar profissionais para lidar com a educação alimentar das crianças.
As creches podem ser aliadas na promoção da saúde e da equidade social. Investir em infraestrutura, em capacitação de profissionais e em compras da agricultura familiar são medidas que podem ampliar os ganhos observados pelo estudo. Outro ponto importante é a integração entre saúde e educação.
Nutricionistas, professores e agentes comunitários podem atuar em conjunto para orientar famílias, criar hábitos alimentares saudáveis e combater o excesso de ultraprocessados. Por fim, vale destacar que o Brasil já tem experiência em programas de alimentação escolar. O Programa Nacional de Alimentação Escolar é uma referência mundial por garantir refeições a milhões de estudantes.
O Brasil também possui uma das taxas de envelhecimento mais aceleradas do mundo. Por outro lado, registra um percentual ainda baixo de crianças pequenas em creches – apenas 35%. Os resultados do nosso estudo indicam que investir nesse segmento é, também, uma forma de promover um futuro com menos doenças crônicas, menos pobreza, mais oportunidades e contribuir para o envelhecimento ativo da população brasileira. Há um impacto positivo e duradouro dos investimentos na primeira infância, sendo a alimentação um pilar que dá suporte às demais dimensões do desenvolvimento — da aprendizagem à formação socioemocional.
Esta pesquisa foi financiada e desenvolvida pela Fundação José Luiz Setúbal (FJLS) e pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs). _





