Muito antes do tráfico de drogas, políticas de repressão e militarização prisional na Ditadura de 1964 criaram o ambiente em que surgiram as primeiras facções criminais do país. Com esse cenário, o Brasil assiste há décadas ao crescimento das facções, especialmente nas periferias das grandes cidades. E a maior parte do que se divulga sobre esses grupos aparece em noticiários sensacionalistas ou na fala de autoridades, que os definem como organizações altamente violentas e movidas pelo lucro do tráfico de drogas e armas. Mas há outras formas de olhar para esse fenômeno. E elas nos levam a repensar o papel do próprio Estado brasileiro para seu surgimento e perpetuação.
Falange Vermelha e Comando Vermelho: resistência prisional na Ditadura
Em minha pesquisa de Doutorado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz, estudei a história das facções criminais do Rio de Janeiro. E, ao invés de tratar facções apenas como produto da maldade ou da criminalidade pura e simples, é possível compreendê-las como formas de resistência social surgidas dentro do sistema prisional. É o caso do Comando Vermelho (CV), que nasceu no final da década de 1970, no presídio da Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Esse grupo surgiu da convivência entre presos comuns e presos políticos enquadrados pelas Leis de Segurança Nacional da Ditadura Militar.
A intenção dos militares na ditadura, ao colocá-los nas mesmas galerias, era fazer parecer que não havia presos políticos no país, além de diluir a influência política dos militantes de esquerda. Mas o efeito foi o contrário: os presos comuns passaram a se organizar coletivamente, inspirados pela disciplina e pelas estratégias dos presos políticos. Assim, começaram a reivindicar direitos básicos e melhores condições de vida dentro do presídio.
Esse processo de organização, que ficou conhecido a partir do primeiro grupo pré-faccional, a Falange Vermelha, representava um projeto de justiça social dentro do cárcere. Com a Lei da Anistia, apenas os presos políticos foram libertados. Os presos comuns permaneceram em condições precárias e sem resposta do Estado. Diante disso, adotaram estratégias mais radicais.
Foi nesse contexto que a Falange se transformou no Comando Vermelho, a primeira facção brasileira. A luta por justiça social, que antes buscava o diálogo, passou a se organizar pela via armada e criminal, pois agora sem os presos políticos, já não eram ouvidos pela direção do presídio. A facção estabeleceu um código de conduta e criou mecanismos de financiamento coletivo, como a “caixinha” (parte do lucro com roubos deveria ser destinado para custear a liberdade dos companheiros presos). A partir da transferência de suas lideranças pela direção para outros presídios, a facção se espalhou pelo sistema carcerário e, depois, pelas favelas do Rio.
A expansão e a transformação das facções
Outras facções surgiram após o Comando Vermelho, como o Terceiro Comando e os Amigos dos Amigos (ADA), todas herdeiras desse modelo inicial. A chegada do tráfico de cocaína impulsionou disputas territoriais e transformou a luta por justiça social em lógica de mercado. As facções se expandiram além do Rio de Janeiro, impondo regras, controlando disputas e regulando práticas nas comunidades. Hoje, há facções que ainda sustentam um projeto de justiça social, enquanto outras adotam uma estrutura faccional, mas para objetivos predominantemente criminais e financeiros.
Ao contrário da ideia de ausência estatal nesses territórios, o que se observa é a atuação das facções em constante tensão ou conluio com agentes públicos, por meio de confrontos ou esquemas de corrupção. Esse cenário revela a falência de um modelo de segurança baseado apenas na repressão.
Reduzir as facções a meras quadrilhas ignora sua origem político-social e o papel do Estado em sua consolidação — seja pela repressão da ditadura, seja pelo abandono das camadas mais pobres. Para muitos jovens sem acesso ao trabalho formal, as facções oferecem uma alternativa, apesar dos riscos. Ignorar esse contexto legitima práticas violentas, como operações letais em favelas, que alimentam o ciclo de exclusão e morte.
A atuação estatal e a reprodução das facções
Com o agravamento das disputas entre facções, a gestão penitenciária do Rio de Janeiro passou a separá-las dentro dos presídios. A medida gerou polêmica, sendo vista por muitos como um atestado da falência do Estado ao institucionalizar tal divisão. No início dos anos 2000, a Secretaria de Administração Penitenciária (SEAP) tentou romper essa lógica com o projeto de um “presídio sem facção”. O Presídio Hélio Gomes foi esvaziado de membros de facções e passou a receber apenas os chamados “presos de seguro” — ex-policiais, estupradores e outros grupos rejeitados pelas facções.
A proposta previa programas de profissionalização e reintegração, mas eles foram descontinuados. Sem políticas efetivas e diante da precarização, novas dinâmicas de poder e exclusão emergiram. Em 2004, estoura uma rebelião em que os presos criam uma nova facção: a Povo de Israel (PVI). Formada pelos que não queriam ser confundidos com estupradores ou ex-policiais, a PVI nasceu justamente da tentativa estatal de neutralizar o ambiente prisional.
Outro exemplo de política pública que falhou nesse enfrentamento foi a das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Embora lançadas com o discurso de pacificação e expulsão de facções das favelas, em muitos casos houve apenas o deslocamento da violência para outras regiões. Em outros, a facção local conseguiu fazer arranjos corruptos que permitiram a continuidade do tráfico no local. Com a saída das UPPs, vácuos de poder passaram a ser disputados por facções e milícias.
Esses exemplos evidenciam que o Estado não é um agente inteiramente contrário às facções. Ao contrário, diversas ações estatais — seja pela omissão, seja por políticas mal planejadas ou mal implementadas — contribuíram para a formação e continuidade das facções.
A violência faccional não surge do nada: ela é fruto de estruturas históricas de dominação e desigualdade. As facções, nesse contexto, são sintomas — e não a causa — do que há de mais perverso em nossa sociedade. Compreender a história desses grupos é também compreender os limites, contradições e cumplicidades das políticas públicas de segurança no Brasil. O surgimento e a perpetuação das facções não podem ser entendidos sem considerar a participação ativa, direta ou indireta, do próprio Estado.
Pensando em respostas, acredito que enquanto não se investir na redução da desigualdade, toda política será ineficaz, apenas fortalecendo a indignação que alimenta as facções. A resposta ao problema deve ir além da repressão e do encarceramento, priorizando políticas trabalhistas e sociais de longo prazo que abordem as raízes da criminalidade.