O STF abriu no início de agosto seus trabalhos do segundo semestre de 2025 com uma sessão cheia de fortes declarações. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, e os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes adotaram um tom de defesa da democracia, da soberania nacional e da independência do Supremo, mas também de combatividade aos golpistas e repúdio aos autoritarismos.
Barroso deu uma boa e breve aula de história em seu discurso. Ele citou os tantos golpes, intervenções militares, rupturas ou tentativas de ruptura institucional e ditaduras que fragilizam a democracia do país. Barroso se referiu à tomada do poder pelos militares em 1964 como “golpe” e ao período de 1964 a 1985 como “ditadura”, lembrando feridas como tortura, exílio, censura, mortes e desaparecimentos.
Para muitos pode parecer óbvio o uso do termo “ditadura” na denominação daquele período, mas é preciso ressaltar dois pontos.
O primeiro é que ainda há muitas pessoas que negam ter existido uma ditadura no Brasil (ou a justificam com argumentos infundados).
O segundo é que um outro ministro do STF, Dias Toffoli, quando presidiu a corte, entre 2018 e 2020, disse preferir se referir ao nosso passado ditatorial como um “movimento”, evitando a palavra “golpe”.
“Eu não me refiro nem mais a golpe, nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”, afirmou, em palestra na USP, em 2018, às vésperas da eleição de Bolsonaro à Presidência.
Teoria dos dois demônios
A fala de Toffoli ressoava uma linha de raciocínio superada na historiografia latino-americana, conhecida como “teoria dos dois demônios”. Esse pensamento atribuía às esquerdas e às direitas as mesmas responsabilidades. Então seriam dois demônios que a sociedade deveria exorcizar.
Essa ideia traz consigo uma relativização ou mesmo isenção dos culpados pelas ditaduras, além de tentar estabelecer um meio termo. Mas História não é matemática (ainda que exista a história da matemática): não dá para somar dois valores e depois dividir por dois para se chegar a uma média. Ao menos não neste caso.
Quem critica a teoria dos dois demônios é o historiador Daniel Aarão Reis. Para ele, “parece utópico igualar camponeses que lutam pela terra a latifundiários. É impróprio igualar aqueles que lutam por justiça social com os que querem eternizar a injustiça social”. Ele ressalta que “havia um movimento muito grande no Brasil antes de 64 por justiça social e democracia, e comparar isso aos que recusavam a democracia parece um procedimento vesgo.”
Alimentando crocodilos
O historiador classificou o discurso de Toffoli como um “aceno conciliador” para um extremismo autoritário que crescia à direita e ganhava o país. Aarão Reis apontava essa tentativa de “amaciar” os extremistas como um equívoco. “A extrema direita, historicamente, avança sobre concessões inconsistentes e se fortalece com isto”. Essa afirmação nos faz lembrar de uma das mais importantes personalidades políticas do século 20, que dizia algo parecido: Winston Churchill.
Primeiro-ministro britânico durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill dizia que “um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado”. Tratava-se de uma crítica a Neville Chamberlain, seu antecessor no cargo. Às vésperas do início da guerra, diante da ascensão do nazismo, Chamberlain apostava na negociação com Hitler, na esperança de que isso pudesse apaziguar a sanha nazista. Um dos maiores enganos da história. No ano seguinte a guerra se iniciaria.
Na ocasião da fala de Toffoli, em 2018, Aarão Reis já nos alertava para o que chamava de indulgência dos democratas de direita e liberais conservadores em relação ao então crescente fenômeno do bolsonarismo. Mais do que isso, a escolha semântica de Toffoli teria ainda o objetivo de legitimar a nomeação de um general da reserva como seu assessor direto no STF. Naquele ano, diante da fala do então presidente da Corte e da possibilidade de vitória de Bolsonaro, Aarão Reis recorria à História para nos dar o alerta:
“Às vésperas de 1964, muitos liberais imaginaram usar ou se servir dos militares para alcançar suas finalidades, afastando líderes populares que os assustavam. Os resultados foram desastrosos para esta gente —todos foram eliminados pelos militares ou tiveram que se conformar com posições secundárias de poder.”
A água bateu no nariz do STF
De Toffoli, em 2018, a Barroso, em 2025, muita água rolou. Bolsonaro assumiu a presidência e o bolsonarismo se impregnou na máquina pública. Seus líderes e adeptos testaram os limites da democracia e das instituições reiteradas vezes. Foram incontáveis faixas e cartazes pedindo fechamento do Congresso e do STF, além de intervenção militar (ou seja, golpe…).
Na medida em que, em nome da governabilidade, Bolsonaro fez acordos com o chamado “Centrão”, a artilharia bolsonarista foi se voltando cada vez mais contra o Supremo, em especial contra o ministro Alexandre de Moraes. A independência entre poderes não é bem-vista pelos autoritarismos. Para fechar o STF bastaria um soldado e um cabo, disse Eduardo Bolsonaro, como quem faz uma sugestão.
Por tudo isso, a recente fala de Barroso na sessão de abertura do semestre reflete um STF mais ciente dos riscos e que sentiu o perigo dos ataques que vem sofrendo. É uma fala que dá nome aos bois: chama ditadura de ditadura e os golpes de golpes. O presidente da Corte citou Deodoro da Fonseca, que renunciou após tentativa fracassada de golpe, sendo substituído por seu vice, Floriano Peixoto, que se manteve ilegitimamente no cargo até 1894, deixando de convocar eleições.
Citou também tentativas de golpe do movimento Tenentista; a Revolução de 30; a Revolução Constitucionalista de São Paulo de 1932; a Intentona Comunista de 1935; o golpe do Estado Novo de 1937; a destituição de Getúlio Vargas em 1945; o contragolpe preventivo do Marechal Lott para assegurar a posse de Juscelino Kubitschek em 1955; duas rebeliões contra Juscelino.
E ainda: o veto dos ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart na ocasião da renúncia de Jânio Quadros em 1961; o já citado golpe de 1964; a prorrogação do mandato de Castelo Branco com a não realização das eleições de 1965; o Ato Institucional nº 5 de 1968; o impedimento à posse do vice-presidente Pedro Aleixo em 1969; a outorga pelos ministros militares da emenda constitucional nº 1 à Constituição de 1967, com o Congresso fechado; os anos de chumbo do governo Médici, período mais asfixiante da ditadura; e o fechamento do Congresso Nacional por Geisel, no Pacote de Abril de 1977.
A História não perdoa
A História não é uma disciplina utilitarista, mas ainda assim tem suas utilidades. Na esfera institucional, serve, dentre outras coisas, para que as instituições se posicionem diante de certas ameaças. Assim que Toffoli chamou um golpe de “movimento”, lá em 2018, o historiador e professor Rodrigo Bonciani quase vaticinou, ao dizer que “a história não perdoa”:
“O passado falseado permite a repetição da história como nova tragédia. Quando esse falseamento parte do presidente da mais alta corte do país, numa palestra sobre os 30 anos da Constituição, todo edifício da nossa frágil democracia pode desmoronar”.
E não deu outra… Ou quase. Os extremistas, de fato, miraram e ainda miram no STF. Mas a Corte, considerando os discursos desta sessão de abertura, parece disposta a agir com firmeza e punir os golpistas, em vez de ficar alimentando crocodilos. A sociedade aguarda, atenta.