Em seus primeiros anos como país independente, os Estados Unidos foram governados sob os Artigos da Confederação, que estabeleciam uma união tênue entre 13 ex-colônias britânicas com formas próprias de organização e interesses diferenciados. Diante de ameaças externas e do perigo da fragmentação interna, os homens que escreveram a Constituição americana, em 1787, criaram um governo central forte o suficiente para garantir segurança e coesão ao novo país e suficientemente fraco para evitar o risco da excessiva concentração de poder. O resultado foi uma República dotada de um sistema de freios e contrapesos baseado no federalismo, na representação política dos governados e na divisão de poderes entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
Diminuto, se comparado às burocracias das monarquias absolutistas de então, tal Estado foi incorporado à narrativa do excepcionalismo histórico dos Estados Unidos: em terras norte-americanas, ao contrário das europeias, caberia à sociedade, não ao Estado, protagonismo na dinâmica da vida social e econômica.
Como toda narrativa nacional, o excepcionalismo escolhe o que e como contar do passado. Escolheu contar que os Pais Fundadores produziram uma Constituição tão extraordinária que, em seus mais de 200 anos, foi emendada apenas 27 vezes.
Parte dessa longevidade, no entanto, é fruto de ambiguidades que tornam o texto constitucional aberto a interpretações múltiplas e cambiantes. A “cláusula necessária e adequada”, por exemplo, atribui ao Congresso poder de legislar para tornar efetivos os poderes dados pela Constituição ao governo, mas não esclarece o que entende por “necessário”. Alexander Hamilton, Secretário do Tesouro (1789-1795), achava necessária a criação pelo Congresso de um banco nacional, não previsto pela Constituição, para promover comércio e indústria. Para Thomas Jefferson, Secretário de Estado (1790-1793), o Congresso só poderia aprovar leis claramente autorizadas pela Constituição. O banco foi criado e, em 1819, a Suprema Corte atribuiu ao Congresso autoridade para determinar o que entende por “necessário”.
Jefferson e Hamilton personificam duas visões do texto constitucional e do Estado. Na visão de Jefferson, a União deve ter menos poderes que os estados e a “cláusula necessária e adequada” deve ser restritiva. Para Hamilton, a União deve ser forte para promover o crescimento da economia e a cláusula deve ser acionada quando julgado conveniente pelo Congresso.
Diante do conflito social de princípios do século XX, momento conhecido como Era Progressista, as visões hamiltonianas prevaleceram e o Congresso deu início à criação do chamado Estado Administrativo.
É contra esse Estado, a que chama depreciativamente de Estado Profundo, o chamado Deep State, que agora se volta o atual presidente dos EUA, Donald Trump.
O Estado Administrativo: da esfera do Congresso ao Executivo Unitário
Para intelectuais e movimentos sociais da Era Progressista, a crise social de então resultava da incapacidade do Estado limitado do século XIX em lidar com a economia urbano-industrial e oligopolizada surgida no pós-Guerra Civil (1861-1865).
Os que passaram a ser conhecidos como liberais norte-americanos reafirmavam a centralidade do indivíduo e da propriedade privada, mas defendiam a ação estatal para minimizar os aspectos negativos das corporações oligopólicas (poder de determinar salários, preços e qualidade dos produtos e serviços) e preservar os positivos (realização de grandes investimentos, organização da concorrência, racionalização administrativa e aumento da produtividade do trabalho).
Propunham, assim, a criação de uma burocracia pública guiada pela ideia de bem-comum, capaz de lidar com os diversos setores de uma economia nova e complexa, para a qual o Congresso não detinha a expertise necessária.
O Congresso deu início, então, à criação de agências administrativas, coração do Estado Administrativo. A mais conhecida talvez seja a Administração de Alimentos e Drogas (FDA, na sigla em inglês), que aprovou a primeira vacina da Covid-19, em 2021. A FDA foi criada em 1906 após o livro The Jungle (A Selva), de Upton Sinclair, denunciar as más condições de trabalho nas empresas de processamento de carne. Hoje, são centenas as agências administrativas nos EUA, que regulam desde a disposição de resíduos tóxicos a relações de trabalho.
Apesar de asseguradas por decisões da Suprema Corte, desde cedo as agências foram acusadas de concentrar funções legislativas (por delegação do Congresso, produzem normas para os setores em que atuam), executivas, na implementação de tais normas, e judiciárias, impondo sanções aos desobedientes.
Eram criticadas, ainda, por constranger as atividades das empresas, formar corpos de funcionários atentos, sobretudo, aos próprios interesses e serem capturadas pelos interesses que deveriam, justamente, regular. Diante disso, o Congresso aprovou, em 1946, a Lei de Procedimentos Administrativos, normatizando seu funcionamento e assegurando a revisão judicial de suas decisões.
Quando políticas econômicas keynesianas e os complexos industrial-militar e aeroespacial ampliaram a participação do Estado na economia, no Pós-Segunda Guerra, o Estado Administrativo cresceu. Com a Grande Sociedade do democrata Lyndon B. Johnson (1963-1969), cresceu mais, sempre por legislação do Congresso. A legitimá-lo, o consenso, herdado do New Deal, de que o Estado tinha papel na promoção da moralidade pública, baseada nas ideias de justiça, equidade e segurança social.
Tal consenso foi abalado pela chamada estagflação dos anos 1970, que contribuiu para a eleição do neoliberal Ronald Reagan (1981-1989) à presidência. Em seu discurso de posse, o republicano afirmou: “Na presente crise, o governo não é a solução do problema: o governo é o problema”. Argumentando que agências administrativas criavam normas setoriais sem preocupação com o funcionamento da economia como um todo, Reagan assinou as Ordens Executivas 12291, em 1981, e 12498, em 1985.
Ordens Executivas têm por objetivo criar diretivas para a execução de leis aprovadas pelo Congresso. As de número 12291 e 12498, no entanto, produziram norma: a primeira determinou que novas regulamentações se orientassem por critérios de custos e benefícios, não por critérios técnicos, como determinava o Congresso; a segunda, que agências deveriam produzir normas afins às políticas da presidência. A justificativa legal foi uma leitura inovadora da “cláusula de empenho”, de modo a permitir ao presidente exercer poderes não expressamente a ele atribuídos pela Constituição.
A feição hamiltoniana do Estado Administrativo, construída pelo Congresso, buscou insular as agências de pressões políticas, inclusive do presidente. Reagan inaugurou a projeção do poder presidencial sobre elas, inaugurando o chamado Executivo Unitário.
A criação da teoria do Estado Profundo
Desde o século XVIII, teorias conspiracionistas abundam nos Estados Unidos, principalmente em momentos de mudança social, quando milhões de pessoas se sentem material, espiritual e sexualmente ameaçadas. Trump tem acionado seu poder carismático para disseminá-las, de modo a mobilizar sentimentos de medo e ansiedade e angariar apoio para seu projeto político.
Uma dessas teorias é a do Estado Profundo (Deep State), segundo a qual o Estado Administrativo tem agenda política contrária aos interesses do seu governo e ao que ele diz serem os interesses da nação. Por exemplo: programas de Diversidade, Equidade, Inclusão (DEI) – sancionados pela Suprema Corte em 2003 – não teria sido resultado da mobilização de movimentos sociais, mas sim “infiltrados” na administração federal pelo ex-presidente Joe Biden (de forma “ilegal e imoral”, segundo Trump), através das Ordens Executivas 13985, de 2021, e 14091, de 2024.
Contra esse tal Estado Profundo, Trump assinou as Ordens Executivas 14151 (denominada “Acabando com programas governamentais radicais e desperdiçadores de DEI), e 14210, criando o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês).
O presidente afirma que ambas restauram a meritocracia no serviço público, mas seus próprios nomes indicam que fazem parte de uma estratégia discursiva para minar a credibilidade do Estado Administrativo e justificar seu desmonte. O objetivo último, como evidencia a indicação de Elon Musk para o DOGE, é suprimir regulamentações de agências administrativas que, para Trump e os interesses econômicos que o apóiam, constrangem as ações das empresas norte-americanas.
Tais Ordens não caracterizam exercício do Executivo Unitário, tal qual inaugurado por Reagan, tampouco a afirmação de valores jeffersonianos, mas um desafio ao Congresso, que criou o Estado Administrativo ao longo do século XX e aprovou o orçamento para financiá-lo no corrente ano fiscal. Estados e associações profissionais têm movido ações contra encaminhamentos do DOGE, como demissões indiscriminadas, e o fim de programas de DEI. Muitas têm sido acolhidas pelo Judiciário. Em resposta, Trump tem acusado juízes de também fazerem parte do Estado Profundo e advertiu a própria Suprema Corte: ”PAREM ESSAS DECISÕES NACIONAIS AGORA, ANTES QUE SEJA TARDE DEMAIS. Se o Juiz Roberts (Juiz-Chefe) e a Suprema Corte dos Estados Unidos não consertarem essa situação tóxica sem precedentes IMEDIATAMENTE, nosso país estará em sérios apuros”.
A associação feita por Trump entre o Judiciário e o Estado Profundo se alimenta, também, da teoria conspiracionista da Grande Substituição, plano de democratas e judeus para substituir a população branca por imigrantes com acesso à cidadania e, através deles, controlar o Estado. A teoria é nutrida pela ansiedade de muitos diante da projetada mudança demográfica: descendentes de europeus, 58% da população em 2022, passarão a 44% em 2060, graças à queda de sua natalidade e à imigração de hispânicos e asiáticos. Depois de assinar Ordens Executivas para restringir a imigração e deportar indocumentados, Trump pediu o impeachment de um Juiz Federal que bloqueou temporariamente a deportação de 137 venezuelanos, chamando-o de lunático e radical de esquerda.
A estratégia discursiva contra o Judiciário é a mesma acionada contra o Estado Administrativo (e, consequentemente, o Legislativo): ilações conspiracionistas para erodir sua credibilidade, construindo condições políticas para eventual descumprimento de ordens judiciais. O caso de Kilmar Abrego Garcia sugere que o presidente já está passando da retórica à prática.
Uma República flertando com o absolutismo?
“Aquele que salva seu país não viola nenhuma Lei” disse Trump, ressoando o também republicano Richard Nixon (1969-1974), para quem ilegalidades de um presidente, se cometidas pelo bem do país, deixam de ser ilegais. Tais afirmativas parecem se inspirar mais no filósofo francês do século 16 Jean Bodin, para quem o rei estava acima da lei, do que com o princípio republicano contemporâneo de que a lei se aplica a todos, inclusive ao presidente.
James Madison, um dos Pais Fundadores, sabia que o princípio republicano correria risco na ausência do sistema de freios e contrapesos. Por isso, o sistema foi inscrito no coração da Constituição e o princípio triunfou quando, em razão do Escândalo de Watergate, Nixon renunciou à presidência para não sofrer um impeachment.
Em seu primeiro mandato (2017-2021), Trump sofreu dois processos de impeachment. Em ambos, foi absolvido pela maioria republicana no Senado. O segundo decorreu de sua participação no ataque ao Capitólio, em 06 de janeiro de 2021. Em Trump v. United States, de 2024, desdobramento legal do ataque, uma Suprema Corte de maioria conservadora atribuiu imunidade a presidentes, decisão que soa mais próxima a Bodin do que a Madison.
Agora, Trump vem disseminando teorias conspiracionistas para minar os freios e contrapesos e implementar uma agenda política de difícil viabilidade por caminhos institucionais. Tem falado, também, em terceiro mandato, algo vedado pela 22a. Emenda à Constituição. Não se sabe sua reação a uma eventual derrota do Partido Republicano nas eleições legislativas de 2026, o que elevaria a chance de novo impeachment. O que parece claro é que, a continuar o processo de erosão do princípio e das instituições republicanas, os próximos anos poderão ser marcados por uma crise constitucional só comparável à que antecedeu a eclosão da Guerra Civil, em 1861.