Ad image

Depoimento: a luta do povo Xavante pela preservação do Rio das Mortes, no cerrado de Mato Grosso

9 Min Read
Depoimento: a luta do povo Xavante pela preservação do Rio das Mortes, no cerrado de Mato Grosso

O rio das Mortes, no Mato Grosso, originalmente é chamado pelo povo Xavante de rio Owawê, que em nossa língua materna significa rio grande. Agora, oito décadas depois do contato forçado com os warazu (pessoas não indígenas), voltamos a lutar pela preservação e pela sustentabilidade desse rio, entre os mais limpos do mundo.

Este rio nasce na Serra de São Vicente, percorre 1.200 quilômetros e deságua no rio Araguaia, banhando municípios como Campo Verde, Primavera do Leste, Nova Xavantina e São Félix do Araguaia. Quase 40% de sua extensão está em nossos territórios indígenas Xavante e Bororo, onde a entrada só é permitida com autorização da Funai e do Ibama. Não deve ser confundido com rio que leva o mesmo nome em Minas Gerais, afluente do Rio Grande.

O contato forçado aconteceu entre 1949 e 1950, liderado pelo sertanista Francisco Meirelles, ao comando do presidente Getúlio Vargas, com apoio do Serviço de Proteção ao Índio e de Marechal Rondon. Denominado Marcha para o Oeste, era um projeto de ocupação da nossa região no país, como forma de garantir a soberania nacional depois da Segunda Guerra Mundial. Foi nessa época que os colonizadores renomearam o Owawê como rio das Mortes. Às suas margens, aconteceram batalhas sangrentas com bandeirantes e garimpeiros por disputa territorial e contra a mineração.

O rio, que para nós é sagrado e um ser vivo com os mesmos direitos de uma pessoa, tornou-se também atrativo turístico da região pela pesca esportiva. As cheias ocorrem entre dezembro e maio, e a estiagem máxima nos meses de setembro e outubro. Mas hoje ele está ameaçado pela proposta de construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas ao longo do seu curso. O governo estadual apoia os empreendimentos para garantir energia ao agronegócio, ignorando os impactos permanentes e diretos para os povos indígenas e para toda a população que já enfrenta temperaturas extremas. Em Cuiabá, o calor chega a 50 graus Celsius.

Falta de medidas de proteção contra queimadas continua ameaçando o Cerrado

Desde o contato, muitas terras nos foram tomadas e hoje vivemos em nove territórios: Pimentel Barbosa, São Marcos, Areões, Parabubure, Maraiwatsede, Marechal Rondon, Chão Preto, Sangradouro e Ubawawe. O avanço do agronegócio trouxe não só a perda de terras e o desmatamento para a região, mas também transformações alimentares com a chegada do arroz mecanizado e dos produtos industrializados. Com isso vieram doenças silenciosas: o diabetes, a obesidade e os problemas cardíacos atingem 62% da nossa população adulta. Nossa mortalidade infantil é cinco vezes maior que a média nacional. Crianças e anciãos morrem precocemente. Em sinal de luto, raspamos os cabelos com frequência.

Além da perda de território e da doença, vivemos a falta de infraestrutura básica. Muitas aldeias não têm energia elétrica, saneamento ou água potável. Na aldeia Wederã, nesta época de seca e de queimadas, estamos agora há mais de um mês bebendo água de um córrego que é usado pelos animais. A maioria está doente, com diarreia. Em 2023 e 2024, o fogo devastou o Cerrado por meses, destruindo plantações, fauna e flora, e chegou às nossas casas. Sem apoio do governo, combatemos as chamas com garrafas PET de água. O governador chegou a nos acusar de sermos responsáveis pelas queimadas, mas dados do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram que 95% dos focos no Pantanal vieram de áreas privadas.

Essa realidade não é só nossa. Povos indígenas em todo o país enfrentam as mesmas ameaças. O que nos revolta é saber que Mato Grosso, que concentra Cerrado, Pantanal e Amazônia, é chamado de berço das águas, mas nós não usufruímos dessa riqueza. Ainda dividiram o Owawê em alto, médio e baixo curso para facilitar a exploração, mas para nós o rio é um só.

Em julho de 2024, foi ampliado o Comitê da Bacia Hidrográfica do Alto Rio das Mortes. Em 2025, fui eleita para ocupar uma cadeira nesse comitê, representando a aldeia Wederã e a Aliança dos Povos do Roncador. Sou a primeira mulher Xavante a participar desse organismo, ao lado do cacique Paulo Cipassé Xavante, professor e gestor ambiental, como suplente. É uma grande honra e uma responsabilidade, porque levamos a voz da nossa etnia, a maior de Mato Grosso, e também a voz do rio.

Lei garante consulta prévia, mas o direito é ignorado

Nosso desafio é fazer com que essa voz seja ouvida. A Constituição garante a consulta prévia sobre empreendimentos próximos às terras indígenas, mas isso tem sido feito apenas para validar projetos já decididos. No entanto, o direito à consulta prévia é um direito dos povos indígenas previsto na Convenção nº 169 da OIT, que foi internalizada no direito brasileiro, e nos artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988. A consulta não é limitada por distância, mas sim pela necessidade de garantir que os povos indígenas sejam consultados em medidas legislativas ou administrativas que possam afetá-los diretamente.

No contexto geopolítico atual, a pressão do agronegócio aumenta. A cidade de Sorriso, em Mato Grosso, lidera a produção de soja e o estado se tornou grande exportador de carne para a China e o Vietnã. Para atender essa demanda, a bancada ruralista apresentou um projeto de lei para retirar o Mato Grosso da Amazônia Legal.. Se o projeto for aprovado, a exigência de preservação cairia de 35% para 20%, facilitando ainda mais a conversão de áreas nativas em lavouras. De 1985 a 2024, o Cerrado teve 40,5 milhões de hectares de vegetação nativa suprimidos. . Na atualidade, o Código Florestal determina que devem ser mantidas reservas legais nas propriedades na proporção de 20% das propriedades localizadas no Cerrado e 35% daquelas situadas na Amazônia Legal cuja vegetação seja de Cerrado. E no mínimo 80% de propriedades na Amazônia Legal cuja vegetação seja de Floresta Amazônica.

Se o Cerrado morrer, os outros biomas estão em grande perigo de morrer também. Situado no coração do Brasil, o bioma é conhecido como o berço das águas por causa das numerosas nascentes e áreas de recarga hídrica que alimentam as principais bacias hidrográficas do país e sul-americanas. Grande parte da riqueza desse bioma está protegida em terras indigenas – cerca 8,3 milhões de hectares, que preservamos à custa de nossas vidas. Em troca, muitas vezes sofremos racismo. Quando saímos das aldeias para estudar ou trabalhar, somos questionados: “por que vocês estão aqui? o que vieram fazer na cidade?”. Somos vigiados e tratados com desconfiança em lojas e mercados. Isso é fruto da falta de políticas públicas educativas e do esquecimento de que nós já estávamos aqui muito antes da chegada dos colonizadores.

Nossos ancestrais lutaram para garantir a sobrevivência e o território. Ontem foram eles, hoje somos nós e amanhã serão nossos filhos, netos e bisnetos. O rio Owawê é nossa vida e nossa alma. Na cosmologia ancestral, preservada e transmitida entre gerações de Xavantes, nosso povo é dividido em dois clãs: os Poreza’onö (girinos) e os Owawê. Fazemos parte do rio e de quem vive nele. E ele faz parte de nós. Defender o rio é defender a existência do povo Xavante e a preservação dos biomas que sustentam o Brasil desde muito antes da chegada dos colonizadores europeus.

Share This Article
Sair da versão mobile