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Depoimento: Advogado descreve o meio século de espera por justiça de Clarice, viúva de Vladimir Herzog

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Depoimento: Advogado descreve o meio século de espera por justiça de Clarice, viúva de Vladimir Herzog

A Justiça brasileira levou cinquenta anos para reconhecer o direito da viúva do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura nos porões da ditadura, em 1975, ao recebimento de pensão vitalícia. Embora tardia – Clarice hoje tem 83 anos e vive com Alzheimer em estágio avançado –, a decisão carrega imenso valor simbólico e histórico. Finalmente, o Estado assume a responsabilidade por um dos crimes mais emblemáticos do período do regime autoritário cívico-militar. A decisão, ainda em primeira instância, foi divulgada em fevereiro de 2025.

Sou uma testemunha privilegiada do caso, pois tive a oportunidade de acompanhar de perto o trabalho rigoroso e comprometido que os advogados do caso realizaram ao longo do processo que resultou no reconhecimento da responsabilidade da União pela morte de Vladimir Herzog. Por isso, parte deste relato foi escrito a partir de memórias pessoais. No inicio da década de 1980, fui contratado como estagiário da então sociedade Rodrigues Barbosa e Mac Dowell de Figueiredo Advogados e, posteriormente, tornei-me sócio de dois dos advogados que atuaram na defesa de Clarice Herzog.

Cerimônia em homenagem aos 50 anos do assassinato de Vladimir Herzog, ocorrida em 8 de abril de 2025 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS): caso do então diretor da TV Cultura de São Paulo, que foi encontrado morto em sua cela horas depois de ser chamado para prestar depoimento, é até hoje um dos casos mais emblemáticos do terror imposto pelo regime autoritário cívico-militar à sociedade brasileira – e que continua sem as devidas punições. EVANDRO LEAL/Agencia Enquadrar/Folhapress

A situação atual de Clarice Herzog acabou sendo impactada pelo filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles e interpretado por Fernanda Torres e Selton Mello, que retrata o auge da violência da ditadura que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985, período em que agentes do Estado, de forma impune, se sentiam autorizados a prender cidadãos sem qualquer base legal, torturar, matar e desaparecer com os corpos de suas vítimas.

O filme mostra, entre outras passagens, o funcionamento das instituições do Estado como extensões da repressão militar, ao acompanhar a luta de Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva, e de seu advogado Lino Machado Filho, na tentativa de localizar o corpo do marido e pai de seus cinco filhos.

Paralelamente à trajetória de Eunice Paiva, o país assistiu à batalha de outra viúva, Clarice Herzog, que enfrentou a estrutura do regime em busca da responsabilização da União pela morte, sob tortura, de seu marido, o jornalista Vladimir Herzog.

Intimado a comparecer ao DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informações, órgão do Exercito voltado à repressão da oposição ao regime militar -, Vladimir Herzog foi submetido à tortura até a morte no dia 25 de outubro de 1975.

Entre o momento de sua apresentação espontânea ao DOI-CODI e sua morte transcorreram poucas horas, o que causou perplexidade à sociedade. Em 1975, o Governo Federal já não dispunha de condições políticas para desaparecer com o corpo de um jornalista conhecido, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo. Herzog havia comparecido publicamente ao DOI-CODI para depor sobre as acusações de envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro.

Como Rubens Paiva, que também não resistiu à convocação para depor, Herzog não possuía qualquer ligação com a luta armada, tampouco recusou-se a colaborar com as investigações.

Ainda assim, encenou-se um simulacro de suicídio, acompanhado por um inquérito policial militar (IPM) que pretendia apurar as “circunstâncias do suicídio”. As fotos anexadas aos autos, ao se tornarem públicas, escandalizaram a opinião pública. Era evidente que não se tratava de suicídio: Herzog aparecia enforcado de joelhos, e sabia-se que os presos não tinham cintos nem cadarços, justamente para impedir o auto enforcamento.

Reação internacional

A repercussão da morte foi imediata e avassaladora. Dom Paulo Evaristo Arns, então cardeal-arcebispo de São Paulo, o rabino Henry Sobel, da Congregação Israelita Paulista, e o reverendo Jaime Nelson Wright, da Igreja Presbiteriana, convocaram um ato inter-religioso em homenagem a Vlado, o apelido do jornalista, na Catedral da Sé, que ganhou ampla repercussão internacional.

Com a mesma coragem de Eunice Paiva, Clarice Herzog, seus filhos Ivo e André, e os advogados Sergio Bermudes, Samuel Mac Dowell de Figueiredo, Marco Antônio Rodrigues Barbosa e Heleno Fragoso ajuizaram a ação declaratória número 136/1976, na qual pediam o reconhecimento da responsabilidade da União Federal pela morte de Herzog.

O pesadelo vivido pela sociedade brasileira começou a dar sinais de enfraquecimento quando, em 27 de outubro de 1978, apenas três anos após o homicídio, o Brasil – e talvez o mundo – recebeu com surpresa a sentença do então jovem magistrado Márcio José de Moraes, da 7ª Vara Federal de São Paulo, que declarou a responsabilidade da União no citado processo 136/1976.

Essa sentença demonstrava que a linha de defesa do Ministério Público Federal não se sustentava. A prisão de Herzog fora ilegal, e não se comprovou o suicídio. Subsistia, portanto, a responsabilidade do Estado pela integridade física do jornalista.

Importa esclarecer que, pelas normas da Constituição de 1967 e da Emenda Constitucional n.º 1 de 1969, cabia ao Ministério Público Federal a defesa da União. Ou seja, a instituição que, em tese, deveria denunciar os crimes cometidos por agentes do Estado era a mesma que se via obrigada a defendê-los. Eis aí um dos traços perversos dos regimes autoritários, em que os mecanismos de controle e justiça são subvertidos para proteger os próprios violadores da lei.

A escolha pela ação declaratória, em vez de uma ação condenatória, foi deliberada: visava evitar que o Governo Militar alegasse que a família buscava lucro com a morte de Herzog. Não se pediram danos materiais nem morais, apenas a declaração formal de responsabilidade.

Inversão perversa como estratégia de defesa

Hoje pode parecer estranho não ter havido pedido de indenização, mas à época era comum que a simples demanda por reparação fosse interpretada como oportunismo. As vítimas, ao reivindicar seus direitos, passavam a ser acusadas de tentar lucrar com a tragédia, numa inversão perversa promovida por setores do regime e da imprensa ainda sob controle da ditadura.

Na defesa apresentada pelo Ministério Público Federal constava, inclusive, a alegação típica de regimes autoritários: a de que a petição inicial pretendia “desmoralizar as autoridades judiciárias e militares” e lançar “desassossego” sobre todos os que, no passado ou no futuro, participassem de investigações ou inquéritos relacionados à subversão, sob o risco de responsabilização por qualquer mal que acometesse um “subversivo” sob custodia estatal “(folhas 104 e 105 dos autos).

Os defensores do regime sabiam o que estava em jogo. Com a possível procedência da ação e o fim do regime se aproximando, tornava-se real o risco de responsabilização futura dos autores de prisões ilegais, torturas e execuções. Infelizmente, isso ainda não ocorreu. Até hoje, o único agente da ditadura condenado por danos morais foi o já falecido coronel Brilhante Ustra, em decisão do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 1.434.498 – SP – caso que atualmente aguarda julgamento final no Supremo Tribunal Federal.

Quando a sentença do juiz Márcio José de Moraes foi confirmada, já sob a vigência da Constituição de 1988, pelo Tribunal Federal de Recursos da 3ª Região, Samuel Mac Dowell de Figueiredo comentou seu significado: mais do que uma vitória jurídica, tratava-se de um reconhecimento público e inequívoco de que havia torturas e mortes nas prisões da ditadura. Ainda durante a própria ditadura, a Justiça declarava que a responsabilidade era da União, e essa verdade “transitou em julgado” perante a sociedade.

Pode-se dizer, como já afirmado por outros, que essa sentença foi um dos primeiros sinais da perda de controle do regime sobre as instituições que ele próprio criara. Uma fresta se abriu. A Justiça começava a recuperar sua autonomia e a ditadura, seu declínio.

A coragem de mulheres como Eunice Paiva e Clarice Herzog, dos advogados que as acompanharam, do juiz Márcio José de Moraes e de todos os que enfrentaram o regime autoritário deve ser lembrada e celebrada. A sociedade brasileira ainda tem uma dívida com essas pessoas.

Há mais um aspecto a ser destacado sobre a decisão que determinou o pagamento de pensão mensal em razão da morte de Vladimir Herzog, cinquenta anos depois. Como se viu, Clarice, à época, optou por não pedir reparação financeira, mas sim o reconhecimento político e jurídico da responsabilidade do Estado. A sentença do juiz Márcio José de Moraes, no entanto, expressamente preservou o direito de ela vir a requerer indenização no futuro.

A indenização é tardia, mas a decisão judicial não merece reparos – e causaria perplexidade se a Advocacia-Geral da União, junto ao Governo Federal, não venha a encontrar uma solução jurídica e política para garantir sua preservação. É isso que se espera de todos os que defendem o Estado Democrático de Direito.

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