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Depoimento especial: A triste queima de arquivo paleoambiental que destrói a história de paisagens de quase 30 mil anos no Brasil

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Depoimento especial: A triste queima de arquivo paleoambiental que destrói a história de paisagens de quase 30 mil anos no Brasil

Outro dia, ao chegar em alguns Capões da mata que escolhi para estudar micro carvões, vivi um dos momentos mais tristes da minha trajetória. Fazem cerca de quinze anos que escolhi a área ambiental, ou fui escolhida por ela.

Desmatamento sempre foi um tema presente para mim, trabalhei como monitora ambiental em uma unidade de conservação durante anos, atuei no apoio operacional em muitas ações de combate a incêndios, não é um tema desconhecido.

Mas entrar dentro daquela floresta, que eu conheci úmida, verde, linda, e ver cada árvore queimada, caída, morta, passarinhos tentando pousar nos poucos galhos secos que sobraram, a calha de um riacho sem água, uma turfeira secando, escorrendo água onde antes absorvia, me impactou como nenhuma leitura sobre desmatamento o havia feito.

Um típico Capão de mata: enclave de floresta úmida em meio a uma vegetação dominante mais árida, em geral de Cerrado: paisagem antiga e típica de serras do centro de Minas Gerais – como a do Espinhaço e a do Cipó – que apresentam uma biodiversidade única e que aos poucos vêm sendo riscados do mapa por queimadas provocadas pela atividade agropecuária.

As imagens desastrosas sobre incêndios florestais são minimalistas diante da tristeza real de adentrar numa floresta devastada pelo fogo. “Incêndio de copa é dos mais tristes de se ver”. Eu ouvi isso no curso que fiz de brigadista florestal, mas ver ao vivo é bem pior.

Aquele Capão devastado pelo fogo me lembrou o clipe da música de Michael Jackson “Earth Song”. E o pior foi ver que não foi um incêndio ocasionado por causa natural como um raio. Ainda não era o pico da seca, mas fazia tempo que não chovia, não tinha como ter caído um raio ali.

Sei mais das florestas do que da minha mãe

Eu estudo a história paleoambiental dos Capões de mata da Cadeia do Espinhaço Meridional há quase dez anos. Eu sou tão filha dessas florestas quanto sou mãe da minha filha. Ela nasceu no mesmo ano em que comecei a estudar os Capões de mata. Eu também nasci das matas, sei mais das florestas do que da minha mãe.

São ilhas de floresta, pedaços da Mata Atlântica que ocorrem em meio ao Cerrado, que protegem e são protegidas pelas turfeiras – ecossistemas de áreas úmidas que garantem a sustentabilidade hídrica na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, fragmentos florestais que ajudam a entender como o bioma Mata Atlântica tem uma história natural rica e profunda.

Os Capões de mata são florestas estacionais semideciduais, no cartório da fitogeografia brasileira, a palavra Capão vem das comunidades tradicionais da Serra do Espinhaço. Tem gente andando por essas serras há muito tempo!

Refletindo sobre conservação, o maior problema ecológico da biodiversidade no mundo hoje é a fragmentação de habitats, causada pela espécie que acredita ser a mais inteligente dentre as demais, nós humanos.

A história das florestas é tão incrível que nos permite ver que até mesmo a fragmentação, quando ocorrida a partir de um processo natural não causa mal, pelo contrário. Isola populações, causa especiações, novas vidas multi espécies e multi culturais. É assim nos Capões de mata, uma explosão de vida que encanta e impressiona.

Melhor que um paisagista

Entrar dentro dos Capões de mata me faz rememorar as leituras sobre Darwin na famosa Ilha de Galápagos. É um portal de imersão, onde se pode observar uma floresta tropical úmida fluir vivida em meio ao ambiente quente e seco da Savana tropical que é o Cerrado.

Essas florestas são úmidas porque ocorrem em meio as linhas de drenagem dos afluentes do rio Jequitinhonha, nas vertentes que dividem os blocos de relevo das montanhas tropicais de altitude.

Dentro dessas florestas, se vê um arranjo ecológico que nem mesmo o melhor dos paisagistas seria capaz de organizar em um lindo jardim botânico. Formada por uma copa fechada, com algumas poucas árvores que emergem por cima do dossel, vários estratos onde vivem plantas em diferentes formas de vida. É incrível como pode haver tantas formas diferentes de viver numa mesma casa (oikos).

Os Capões têm formatos circulares, formam matas de galeria ao longo das calhas dos riachos e também ocorrem na transição entre as turfeiras e o campo limpo úmido do Cerrado ao entorno. Dentro deles coexistem lianas, árvores, arbustos, herbáceas, bromélias, líquens, orquídeas, samambaiaçus, palmeiras. É uma explosão de vida, de cores, aromas, texturas. Eu juro que é um lugar incrível!

São centenas de ilhas de floresta espalhadas ao longo da maior cordilheira montanhosa do Brasil. Cada uma delas guarda uma composição florística própria. As espécies se repetem bem pouco entre os Capões de mata, como mostrei no artigo publicado na Revista Brasileira de Geografia Física.

A maior parte delas tem seu centro de origem fitogeográfica nas florestas atlânticas, o que comprova serem uma fitofisionomia disjunta desse bioma, mas também ocorrem nos Capões espécies dos biomas Cerrado e Amazônia. Aliás, é impressionante que num grau de latitude tão distante os Capões de mata tenham 35% de similaridade florística com a floresta Amazônica tão lá longe.

Micro vestígios botânicos contam histórias

Os Capões de mata são o que podemos chamar de enclaves florestais, ou simplesmente paisagens de exceção, pois diferem do bioma predominante.

É nessa busca que concentro minha pesquisa. Por meio de vestígios paleobotânicos microscópicos, tentar entender como foi o processo de evolução dessas florestas. O que atuou sobre a formação delas: rotas migratórias de passarinhos? Movimentações no relevo? Oscilações climáticas? Incêndios naturais? Incêndios antrópicos? Seres humanos pré-históricos? O quê mais ajudou a moldar essa paisagem?

Os solos sobre o qual elas desenvolvem é orgânico, formado a partir da acumulação de material vegetal sequencialmente com o tempo. Devido ao ambiente montanhoso, a elevada altitude e baixas temperaturas, a taxa de decomposição é baixa, o que favorece a acumulação sedimentar.

Nesses organossolos ficam guardados vestígios botânicos da vegetação que em diferentes momentos paleoambientais fizeram parte da história natural daquela paisagem. Estudo micro vestígios botânicos, no escopo do que chamamos paleobotânica.

Tanto é que as turfeiras são conhecidas como arquivos de mudanças paloambientais. No interior dos Capões de mata se desenvolvem solos turfosos dos quais retiramos testemunhos de solo. E é daí que fazemos a datação da matéria orgânica por meio de radiocarbono (14C) que mostram idades que se aproximam dos 30 mil anos antes do tempo presente, do período Pleistoceno.

Ainda temos muito a aprofundar sobre essas datações. Em correlacionar estudos arqueológicos e paleoambientais na Serra do Espinhaço, em novos marcadores de mudanças paleoambientais. Desvendar esses Capões tem sido um dos motivos para acordar todos os dias. Isso me desafia, mas me deixa muito feliz.

Conhecer a história paleoambiental das paisagens, transcende a busca de conhecimento das Ciências Naturais, ou mesmo da epistemologia científica, que a partir de novas descobertas cria elos que ligam ciência básica e ciência aplicada.

Futuro respeitoso

É também e, talvez sobretudo, uma demanda ancestral, pois seguir para o futuro de um Planeta tão devastado por problemas ambientais pede compreensão sobre como essas paisagens surgiram, evoluíram, como se entrelaçam as relações entre pessoas, plantas e paisagens para que possamos nos dedicar humanamente a construção de um futuro respeitoso entre todos os seres que continuarão a fazer parte da história das paisagens.

Poder compreender por meio de fragmentos de pólen, fitólitos ou carvões um pouco mais sobre a história do fogo, a relação entre pessoas, florestas, savanas, campos, fogueiras, incêndios, é uma materialização do tão almejado conhecimento ancestral.

Para além de poder reconstituir uma paisagem com seus elementos fisiográficos, é a possibilidade de sentir uma efetiva ligação entre passado, presente e futuro da Terra.

Os pesquisadores pertencentes aos povos originários têm dito que as paisagens de hoje estão repletas de fragmentos. E refletir sobre as perspectivas antropológicas para o entendimento da história ambiental, a partir dos vestígios deixados na natureza, no contexto das questões ambientais que atravessam o Antropoceno é fundamental. Compreendê-los pode levar ao conhecimento de novas vidas multiespécies e multiculturais.

Em um estado global de precariedade não temos muitas opções além de procurar vida nas ruínas do Antropoceno se quisermos mais profundidade no aprender sobre a história das paisagens. O futuro do planeta é ancestral.

Revelações dos diários de brigadistas

Quando trabalhei como redatora de relatórios de ocorrência de incêndios, me lembro que nos diários de campo dos brigadistas a causa dos incêndios era sempre “possivelmente antrópica”. Uma vez só ouvi falar de fogo de raio, mas raio cai mais é no Cerrado. Dentro do Capão de mata, úmidos como são, difícil entrar fogo de raio.

A paisagem tem sua resiliência, ela resiste aos impactos com os quais vem naturalmente interagindo há milhares de anos. Contra o nosso fogo a floresta não consegue resistir, pois é intenso, é forte, é desintegrado das possibilidades de resiliência da paisagem. Para mim, é antrópico e, paradoxalmente, desumano.

As possíveis razões? Acho que é preciso estudar melhor para compreender, há os que são mais punitivistas, que defendem leis mais severas, investigações, punições, multas.

Eu sou naturalista, sou mais do compreender. Conversando com as pessoas aqui e acolá… se fala em fogo para ações de caça, renovação de pastagem, garimpo ilegal, invasão de terras, são várias as especulações.

Baú de saberes ancestrais se perde com a queima

O que eu sei é que quem põe fogo num Capão de mata de dentro pra fora não faz ideia do valor inestimável que os fragmentos paleobotânicos guardam debaixo das camadas de solos orgânicos pleistocênicos e holocênicos.

Quem mora numa comunidade abastecida pela água da turfeira, que coloca fogo na nascente de onde brota sua própria água, deixou de compreender muita coisa.

Não desacredito da humanidade. Acredito que existem sim muitas ideias para adiar o fim do mundo, mas é preciso admitir que falhamos, temos falhado muito na compreensão de que o futuro é ancestral, o passado é a chave do futuro.

Naquele dia que entrei no Capão queimado, me perguntei: Quantos existirão daqui a alguns anos? É uma verdadeira queima de arquivos. Cada Capão de mata queimado vai-se um baú de saberes ancestrais, sobre todos os elementos e seres que interagiram formando a paisagem.

Vai entender esse ser tão inteligente que tem se esforçado tanto na queima de arquivos que guardam sua própria história. O ser descrito pelo filósofo Nietzsche como: demasiadamente humano.

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