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Depoimento especial: o relato de como o acesso a um doutorado muda realidades no interior do Brasil

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Depoimento especial: o relato de como o acesso a um doutorado muda realidades no interior do Brasil

Sou a sexta filha de um casal de lavradores das comunidades tradicionais geraizeiras de Palmeiral e Julião, áreas rurais do município de São Desidério, Oeste da Bahia. Com muita dificuldade e pouca oportunidade de trabalho, meus pais sobreviviam de diárias de trabalho braçal, da venda de mel de abelha e prestavam serviços como meeiros em propriedades de amigos e conhecidos. Anos depois se mudaram para o distrito Sítio do Rio Grande, para que tivéssemos acesso à escola.

Apesar de meus pais terem estudado pouco (pela falta de acesso), sempre nos incentivaram a buscar conhecimento e, por isso, não mediram esforços para termos acesso à informação. Foram eles que me apresentaram o Cerrado com um olhar de amor e cuidado com a natureza, numa vida de simplicidade.

Meu pai costumava trazer algum jornal para casa e nos presenteava com gibis, revistas de curiosidades e atualidades. Me marcou certa vez no Ensino Fundamental quando ele nos comprou um dicionário da língua portuguesa e um atlas de geografia e disse: “Isso aqui é para você estudar e consultar. Aprender a usar as palavras. Mesmo que você não viaje nunca, é bom saber onde ficam as regiões do Brasil e as capitais dos estados e dos países.” Imediatamente fomos procurar a nossa região no mapa e pela primeira vez tive noção da dimensão que o mundo tem.

Trajetória até o doutorado

Cursei todo o ensino básico no Distrito Sítio do Rio Grande. Fui alfabetizada na Escola Municipal Dep. Luiz Braga e fiz o Ensino Fundamental 2 e o Ensino Médio na Escola Municipal Manoel Rodrigues de Carvalho. Sempre dedicava tempo para ler contos, poemas e amava revistas como “Ciência Hoje – das Crianças”, disponibilizadas na escola. Cada nova descoberta fazia meus olhos brilharem e, motivada por meus professores, especialmente os de Português, Ciências e Biologia, decidi seguir a carreira científica.

Para auxiliar financeiramente a família, durante o dia trabalhava em um açougue, o que também me permitiu custear meu primeiro curso de Informática Básica. Ao finalizar o Ensino Médio com bom desempenho, me inscrevi e fui a única estudante da localidade contemplada no processo seletivo para o curso pré-vestibular, ofertado pela Secretaria do Estado da Bahia por meio do Programa Universidade Para Todos. Durante o dia, prestei serviços a Agência Comunitária de Correios (ACC) da minha localidade e à noite ia para as aulas do pré-vestibular.

Fui aprovada na primeira chamada do vestibular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), tanto para Licenciatura em Ciências Biológicas quanto para Letras Vernáculas, me matriculando na primeira opção. Iniciei o curso e conseguia conciliar as aulas da faculdade ao curso de inglês e ao trabalho provisório.

Posteriormente, em busca de novos caminhos para minha formação acadêmica fiz novo processo seletivo e fui aprovada para cursar Ciências Biológicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA) (atual Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB), também em Barreiras. No mesmo período, fui também aprovada no concurso público para o cargo de Agente Comunitário de Saúde em São Desidério, onde trabalho até os dias de hoje.

Para chegar à universidade, o trajeto de Sítio do Rio Grande até São Desidério era feito em van, de carona ou em carros pequenos que circulavam numa linha em diferentes turnos. Chegando em São Desidério, quando não conseguia alcançar o transporte escolar, seguia para Barreiras em outra van ou ônibus e no centro da cidade aguardava mais um transporte coletivo que faz rota até o campus.

Apesar da rotina exaustiva, segui cursando poucos componentes por semestre e tranquei por um período. Por meio da política de Assistência estudantil, do Programa de Apoio Financeiro ao Estudante (PAFE), nos anos finais da graduação recebi apoio financeiro para alimentação e custear o deslocamento.

Durante o curso, além das disciplinas, me dediquei a outras atividades ofertadas pela UFOB. Finalizei a graduação com o TCC na área de Taxonomia Vegetal, com o levantamento de espécies de leguminosas do entorno da Cachoeira do Acaba Vida, localizada em uma Unidade de Conservação da cidade de Barreiras.

No mesmo ano de conclusão, fui incentivada a tentar a seleção para o mestrado em Ciências Ambientais na mesma instituição. Fui aprovada e contemplada com uma bolsa ofertada pela CAPES. Durante o curso, aprendi técnicas de campo e laboratório, fiz estágio em docência e participei de grupos de estudos e discussões sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS.

Participei de eventos científicos nacionais e regionais e atuei como representante discente junto ao Colegiado do Programa. Me dediquei à pesquisa voltada para interação inseto-planta, com caracterização de morfotipos de galhas entomógenas em três espécies de Copaifera, finalizando a mesma no contexto de pandemia. O mestrado foi um período de muito aprendizado, onde a bolsa me permitiu vivenciar melhor a universidade e compreender mais sobre seus pilares (ensino, pesquisa, extensão e gestão).

Decidi tentar a seleção para o doutorado em Ecologia, Conservação e Biodiversidade da Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais e me inscrevi dentro das políticas afirmativas para pretos e pardos. Com boa pontuação em todas as etapas do processo seletivo, fui selecionada e novamente contemplada com uma bolsa ofertada pela CAPES.

Sem conhecer a cidade, me desloquei para realizar os estudos e cumprir os créditos necessários. Durante o curso, participei de oficinas em escolas públicas, realizei um Curso de campo no Parque Estadual da Serra de Caldas Novas (PESCAN) e estágios de docência para graduação.

As orquídeas apresentam diversas estratégias que possibilitam sua sobrevivência em diferentes condições ambientais. Imagem disponibilizada pela autora

Minha pesquisa busca entender a relação entre as plantas e o ambiente, por meio de estratégias que possibilitam sua sobrevivência em diferentes condições, tendo como modelo de estudo a orquídea Vanda e estruturas de sua raiz. Irei defender a tese (em outubro próximo) e obter o título de doutora.

O que trago de bagagem

Realizar um doutorado é mais que criar e depois abraçar uma oportunidade que nos desafia, por isso o curso me trouxe muitas contribuições que levarei para a vida e que serão aplicadas no campo profissional. De modo geral, o curso despertou ainda mais meu senso crítico para diversas questões tanto ambientais, quanto sociais, me ajudou a enxergar um mundo maior que meu município, a partir de outras óticas, realidades e possibilidades.

Além do conhecimento teórico e das boas práticas de laboratório, o curso me oportunizou executar protocolos, desenvolver habilidades para resolução de problemas, melhor manuseio em ferramentas básicas, bem como compreensão e interpretação de dados. Para muitos no meio acadêmico isso parece básico, mas é de grande valor para gerar oportunidades de onde venho.

As raízes estudadas na pesquisa têm me ensinado que adaptações são necessárias para que haja crescimento. Refleti ainda mais sobre meu papel na sociedade como mulher, negra, de origem humilde, como profissional de saúde, educadora, me tornando uma das muitas que rompe um ciclo histórico, sendo a primeira da família a ingressar num curso superior e a primeira a seguir na pós-graduação. Aprendi muito e sigo aprendendo que, por mais difícil que seja uma caminhada e por mais prazeroso que seja alcançar um destino, o melhor de tudo será sempre o que vivenciamos no percurso.

Graças a diversas técnicas aprendidas e a experiência vivenciada, retorno com mais bagagem e habilidades que poderão ser usadas diretamente no meu atual trabalho ou em novas portas que possam se abrir no futuro. Espero poder partilhar esse conhecimento que vem sendo construído e motivar outros jovens a seguir seus objetivos com dedicação, honestidade e amor pelo que faz. É disso que a ciência precisa!

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