Dormitório onde força-tarefa resgatou 163 trabalhadores chineses na construção de fábrica no Brasil. Foto: MPT/MTE/Uso liberado
Este artigo, escrito por André Uzêda e editado por Bruno Fonseca, foi originalmente publicado no site da Agência Pública em 20 de janeiro de 2025. Ele foi editado por questões de espaço e contexto aqui sob acordo de parceria com o Global Voices.
Cerca de dois meses depois de uma reportagem da Agência Pública denunciar supostas agressões contra trabalhadores na fábrica da BYD, a empresa chinesa líder global na produção de carros elétricos, na Bahia, região nordeste do Brasil, novas denúncias surgiram.
O caso foi publicado pela primeira vez em novembro de 2024. Agora, de acordo com informações obtidas pela reportagem, a empresa instalou câmeras de filmagem nas áreas administrativas e nos galpões de obras e fixou cartazes proibindo que fotografias fossem tiradas nestes espaços.
Além disso, segundo a denúncia feita à reportagem, foi instalado um programa de computador que cria uma marca d’água com nome de cada funcionário para identificar de que máquina partiu materiais compartilhados com o público externo.
Para informar aos funcionários sobre o programa, a BYD enviou um e-mail no dia 18 de dezembro de 2024, ao qual a reportagem teve acesso, explicando as novas diretrizes adotadas.
Na mensagem, a empresa informa que a instalação foi feita pelo “departamento de Tecnologia da Informação da China”, e que “essa marca informa o nome do usuário logado no equipamento, nome do equipamento e a data atual”. A empresa explicita que “essa medida visa evitar possíveis vazamentos de informações”.
Agressões, rotinas exaustivas e insalubridade
Todas estas ações começaram a ser implementadas logo após a Pública divulgar com exclusividade, a denúncia de que operários trazidos da China estavam sendo submetidos a condições precárias de trabalho, vivendo em alojamentos sujos, aglomerados e mal iluminados.
Segundo relatos ouvidos pela reportagem, a situação não atingiu trabalhadores brasileiros. Os próprios brasileiros relatam que os chineses têm enorme dificuldade de comunicação para formalizar algum tipo de denúncia, pois eles não entendem o português, assim como os brasileiros também não conseguem se expressar em mandarim, cantonês ou nenhum dos outros cinco idiomas falados na China.
Com base em relatos, imagens e vídeos, a reportagem mostrou que muitos operários atuavam sem equipamentos de proteção individual, submetidos a rotinas de 12 horas por dia, sofrendo agressões físicas em caso de descumprimento de ordem ou atraso no prazo da obra.
No dia 23 de dezembro, um mês após a denúncia, uma força-tarfea que inclui o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Ministério do Trabalho e Emprego resgatou 163 operários chineses, contratados pela empresa Jinjiang Group – uma das três terceirizadas da China que a BYD fechou parceria para montagem da fábrica na cidade baiana de Camaçari, pólo industrial do estado.
Além das péssimas condições de trabalho, a força-tarefa o MPT identificou que os operários estavam sendo submetidos a condições análogas à escravidão, com passaporte e parte do salário retidos pela Jinjiang. Cerca de 60% dos proventos eram confiscados e o restante pago em moeda chinesa para evitar o abandono do emprego.
Segundo a advogada especialista em direito trabalhista, Ana Paula Studart, empresas devem seguir as normas de saúde e segurança do trabalho para proteger seus funcionários. ‘‘Isso inclui a implementação de programas de prevenção de acidentes, equipamentos de proteção individual, a realização de treinamentos periódicos e de exames de saúde ocupacional. Tudo isso é indispensável para uma adequação aos âmbitos trabalhistas das empresas estrangeiras”, diz ela.
O setor de terraplanagem (preparação do terreno para a obra), pelo qual a Jinjiang era responsável, foi embargado pelos auditores do MPT. O caso levou o governo brasileiro a suspender a emissão de vistos de trabalho temporários para a BYD no final de dezembro.
O que dizem as empresas
A BYD informou, por meio de nota, que “não tolera desrespeito à lei brasileira e à dignidade humana” e, diante disso, “decidiu encerrar imediatamente o contrato com a Jinjiang”. A montadora divulgou ainda que os 163 operários resgatados foram levados de volta para casa e receberam os valores que lhes eram devidos em contrato.
Procurada para explicar a instalação das câmeras e do programa que identifica o perfil dos usuários, a empresa disse, que “medidas relacionadas à proteção de segredos industriais são práticas comuns e essenciais em indústrias de ponta, especialmente para empresas líderes em inovação tecnológica”.
A empresa informou ainda que essas ações “refletem a responsabilidade de proteger ativos estratégicos e são adotadas de forma consistente, respeitosa e dentro da lei”, uma vez que a BYD diz solicitar, em média, “45 patentes por dia útil”.
Na nota, a BYD não explicou por que só passou a adotar tais “medidas de proteção industrial” logo após as denúncias sobre maus tratos aos operários chineses, já que a empresa começou as obras na Bahia em março de 2024.
‘Caça às bruxas’
A medida da BYD de vigiar os funcionários na tentativa de evitar novos vazamentos de possíveis irregularidades contrasta diretamente com o discurso público adotado pela empresa, desde que as denúncias de trabalho análogo à escravidão? vieram a público.
Sem anúncio público, a BYD instalou 135 câmeras em vários espaços – em muitas ocasiões, mais de um aparelho no mesmo cômodo.
Pessoas ouvidas pela reportagem citaram um clima de “caça às bruxas” para tentar descobrir e punir os supostos responsáveis, mesmo sem comprovação de que o material da primeira reportagem tenha partido de funcionários da BYD.
Um escritório jurídico de São Paulo, a Urbano e Vitalino Advogados, foi designado para dar suporte durante a crise. Em nota, a BYD disse que o escritório já prestava serviços para a BYD anteriormente e tem “colaborado nas questões relacionadas às empresas contratadas para realizar as obras em Camaçari”.
Em dezembro, com ajuda de tradutores chineses, o presidente da BYD no Brasil, Tyler Li, conversou com os funcionários brasileiros, reforçando a importância do empreendimento.
Segundo os relatos, ele teria garantido que os funcionários brasileiros que trabalhavam na parte administrativa da Jinjiang – e não sofreram maus tratos e agressões – não perderiam seus empregos com o fim do contrato com a empresa chinesa. Parte dos funcionários, porém, teria recebido aviso prévio em janeiro.
Em nota, a BYD disse que os colaboradores brasileiros da Jinjiang serão considerados em um processo seletivo e os que atenderem aos requisitos dos cargos disponíveis “serão integrados ao time”.
A BYD disse que está comprometida com o Brasil e com a cidade de Camaçari – e tem o intuito de transformar o local no “Vale do Silício da América do Sul”.
Lobby pró-BYD
Na semana em que a Pública divulgou a denúncia de maus tratos aos trabalhadores, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, do Partido dos Trabalhadores – PT, o mesmo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, participou de um evento na planta de obras da BYD. A cerimônia já estava marcada antes da publicação da reportagem.
Indagado por jornalistas sobre o caso, o governador se limitou a dizer que confia na BYD, citando o histórico do seu partido em defesa do trabalhador.
O prefeito de Camaçari, Luiz Caetano, também do PT, saiu em defesa da empresa, dando a entender que há interesses de concorrentes para desgastar a imagem da BYD.
O governador Jerônimo e o presidente Lula têm tratado a instalação de uma fábrica da BYD no estado como parte de uma estratégia de aproximação com a China. O governo federal tem ainda um contrato com a empresa para usar dois de seus modelos como carros oficiais. Isso fortaleceria a empresa no mercado nacional, fazendo frente à Tesla, do bilionário Elon Musk, principal concorrente no mercado de carros elétricos no Brasil.
O terreno onde a empresa chinesa está construindo sua fábrica em Camaçari foi da Ford por quase 20 anos. A montadora dos EUA decidiu encerrar sua produção de automóveis no Brasil em 2021.
O governo baiano, então, comprou o terreno e o revendeu para a BYD pelo valor de 287,8 milhões de reais (cerca de 49,8 milhões de doláres), para atrair a instalação da primeira fábrica de carros elétricos no país.