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Deportações em massa expõem fragilidade dos mais vulneráveis diante da frieza das políticas migratórias

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Deportações em massa expõem fragilidade dos mais vulneráveis diante da frieza das políticas migratórias

A recente reviravolta na condução das novas deportações de brasileiros indocumentados (135 passageiros chegaram em Fortaleza em 7 de fevereiro), conduzida pelo governo trouxe novamente à tona um escândalo que envolve violações dos direitos humanos e do direito internacional, com graves implicações para as relações entre Brasil, Estados Unidos e demais países latino-americanos.

O primeiro episódio, ocorrido em 25 de janeiro, quando 88 brasileiros foram repatriados em condições desumanas – com algemas em pulsos, pés e cintura, em uma aeronave com falhas técnicas críticas – expõe um descaso administrativo inadmissível e um doloroso descumprimento de tratados e declarações internacionais essenciais para a convivência pacífica entre pessoas e nações.

Do ponto de vista jurídico, é importante analisar os instrumentos internacionais que deveriam resguardar a dignidade dos indivíduos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), embora não seja um tratado de ratificação obrigatória, funciona como um marco ético e normativo para os Estados. Em seguida, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) foi assinado pelos Estados Unidos em 1977 e ratificado em 1992, obrigando o país a garantir a proteção dos direitos civis e políticos, inclusive a integridade física e moral de seus indivíduos. Outro instrumento fundamental é a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), que os EUA assinaram em 1988 e ratificaram em 1994, impondo a prevenção de práticas que possam configurar tortura ou tratamento desumano.

No entanto, a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros de Suas Famílias (1990), embora tenha sido assinada pelos Estados Unidos, nunca foi ratificada, deixando uma lacuna significativa na proteção dos migrantes – especialmente relevante para os trabalhadores imigrantes, muitos dos quais, como os brasileiros, enfrentam condições precárias e abusivas durante processos de deportação.

Condições desumanas de deportados brasileiros desafiam soberania nacional

Para o Brasil, a situação gera um forte imperativo de defender a soberania nacional e os direitos de seus cidadãos. Em um cenário em que 7.600 brasileiros foram repatriados nos últimos cinco anos, o episódio de deportação em condições desumanas eleva a urgência de medidas de proteção e de intervenção diplomática. O governo brasileiro, ao exigir um voo com apenas uma escala e a presença de um diplomata durante o embarque, sinaliza uma resposta firme, mas insuficiente, já que também precisa ser acompanhada de ações jurídicas e de apoio social aos afetados.

Para os Estados Unidos, o episódio representa uma contradição flagrante entre seu discurso de defesa dos direitos humanos e a adoção de práticas que violam compromissos internacionais previamente assumidos. Em teoria, a pressão internacional e eventuais litígios em tribunais de direitos humanos poderiam gerar consequências diplomáticas e afetar a credibilidade das políticas migratórias norte-americanas.

No entanto, na prática, tais medidas raramente se traduzem em penalizações efetivas. Em um cenário de confronto direto, especialmente sob administrações como a de Donald Trump, os maiores custos políticos e jurídicos recaem sobre países menos poderosos, enquanto os Estados Unidos impõem sua agenda migratória sem grandes repercussões externas.

Para um imigrante em situação irregular, as chances de sucesso em uma ação judicial contra o governo norte-americano são extremamente reduzidas, dada a ampla discricionariedade das autoridades migratórias e a prevalência da legislação interna sobre a soberania nacional. A proteção diplomática, por sua vez, dificilmente pode ser invocada nesses casos, pois, conforme o Direito Internacional, um dos requisitos essenciais para sua aplicação é que o indivíduo tenha mantido conduta lícita no país estrangeiro.

Governos latino-americanos devem se unir em resposta coordenada

Se a legislação local classifica sua presença como um delito, ainda que administrativo, o direito à proteção diplomática se torna inviável,salvo em situações excepcionais, como negação de justiça, encarceramento sem julgamento, expropriação discriminatória ou arbitrária, nacionalização ou confisco sem compensação.

Para outros países latino-americanos, como a Colômbia – que enfrentou uma crise ainda mais severa –, estas repatriaçōes forçosas devem servir de alerta. A ausência de um mecanismo regional eficaz de proteção aos migrantes reforça a necessidade de uma resposta coordenada entre os governos da região. Sem uma política unificada, episódios de violação de direitos humanos continuarão a ocorrer, deixando milhares de cidadãos latino-americanos à mercê de políticas migratórias cada vez mais restritivas e, em muitos casos, desumanas. A Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (CELAC), tomando como base inicial o Processo de Quito de 2018, poderia ao menos debater o tema y pensar em uma resposta conjunta e coordenada.

Esses casos, analisados com a devida neutralidade científica, evidenciam a necessidade de repensar os métodos de execução das políticas migratórias. Para os brasileiros afetados, existem caminhos legais possíveis, embora com eficácia “variável”, para dizer o mínimo.

No âmbito internacional, é possível recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e ao Comitê de Direitos Humanos da ONU, desde que se comprove a violação de direitos fundamentais. No entanto, o principal obstáculo reside na exigência do esgotamento prévio de todos os recursos disponíveis na legislação norte-americana, conforme determinam tanto a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) quanto o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU.

No plano consular – a outra vía – se poderia contar, ao menos teoricamente, com uma atuação robusta que abarque a assistência jurídica preliminar, a mediação para assegurar tratamento digno durante o processo de deportação e, em casos excepcionais, pedidos formais de revisão processual, caso haja indícios de irregularidades ou negação de justiça no país de destino.

Apesar das barreiras inerentes ao sistema jurídico internacional e da resistência de governos que priorizam a soberania nacional, a mobilização da sociedade civil e de organizações não governamentais pode pressionar por investigações e, com muita sorte, mudanças significativas. Mas muito ainda precisa ser feito para que isso aconteça.

Desafio duplo para o Brasil

Para o governo do Brasil, o desafio é duplo. Por um lado, é necessário intensificar a pressão diplomática e negociar protocolos de repatriação que estejam em conformidade com os compromissos internacionais.

Por outro, é imperativo investir em políticas públicas que integrem e ofereçam suporte aos cidadãos retornados, evitando a revitimização e assegurando condições dignas de reintegração. A possibilidade de êxito depende tanto da pressão internacional (o Brasil, como sempre, opta pelo diálogo) quanto da capacidade de articulação interna para transformar denúncias em ações concretas.

As deportações desumanas são um espelho brutal das contradições de um mundo que prega a liberdade enquanto ergue muros, que fala de direitos humanos enquanto algema aqueles que buscam apenas sobreviver. A humilhação imposta a esses brasileiros, aos nossos irmãos colombianos e a muitos outros, arrancados de suas rotinas e enviados de volta sem dignidade, é um lembrete cruel da fragilidade dos mais vulneráveis diante da frieza das políticas migratórias. Cada voo de deportação carrega sonhos despedaçados, famílias separadas, esperanças esmagadas. Se a resposta for apenas burocrática, perderemos a chance de reafirmar nossa humanidade.

O Brasil, como nação, deve ser mais que um espectador impotente: precisa erguer-se não apenas por seus cidadãos, mas por um princípio maior – o de que nenhuma vida pode ser tratada como descartável. Enquanto houver injustiça, enquanto houver vozes silenciadas, é nosso dever falar, denunciar e exigir um mundo onde fronteiras não sejam sinônimo de condenação, mas de possibilidade.

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