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Descoberta de indústria clandestina de fuzis coroa quatro décadas de escalada bélica do crime no Brasil

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Descoberta de indústria clandestina de fuzis coroa quatro décadas de escalada bélica do crime no Brasil

A descoberta, no coração industrial do interior de São Paulo, de galpões clandestinos equipados com prensas e tornos CNC de alta precisão, operando como verdadeiras fábricas para a produção em série de fuzis AR-15, não é um evento isolado ou um mero avanço tático do crime.

É, na verdade, o clímax de uma crônica de quatro décadas que narra a busca incessante e a adaptação estratégica das organizações criminosas brasileiras por um poder de fogo cada vez maior. Este fenômeno representa a mais recente e perigosa metamorfose em uma longa linhagem de inovação criminal. O que começou nos anos 80 com disputas territoriais no Rio de Janeiro, alimentadas por desvios de arsenais públicos e um contrabando transfronteiriço incipiente, evoluiu para uma complexa operação logística global, explorou com maestria as brechas na legislação civil e, agora, atinge um novo e alarmante patamar: a autonomia industrial.

A ascensão dessas fábricas de “ghost guns”, armas sem número de série e, portanto, virtualmente irrastreáveis, representa um salto quântico na capacidade do crime, consolidando uma demanda que nunca cessou e que redefine, de forma fundamental, os desafios da segurança pública no país.

Corrida armamentista entre o crime e a polícia

A história do fuzil como protagonista da violência urbana brasileira tem um marco geográfico e temporal claro: o Rio de Janeiro, entre as décadas de 1980 e 1990. Naquele período, a introdução dessa arma de guerra no arsenal do crime não foi uma resposta direta à ação policial, mas sim o resultado de um conflito horizontal. A gênese das grandes facções, como o Comando Vermelho (CV), remonta ao sistema prisional da ditadura militar, onde a convivência entre presos comuns e políticos permitiu a absorção de noções de organização e hierarquia.

Ao se expandirem para as favelas, impulsionadas pela lucratividade do tráfico de cocaína, a ambição do CV de monopolizar o mercado varejista foi desafiada pelo surgimento de grupos rivais, notadamente o Terceiro Comando (TC). Foi essa disputa acirrada que deu início a uma feroz corrida armamentista. O objetivo era claro e militar: alcançar a supremacia bélica para conquistar e manter territórios.

A polícia, em um segundo momento, viu-se forçada a adotar uma doutrina reativa de “paridade de fogo”, equipando seus próprios agentes com fuzis para poder operar em um cenário de guerra já estabelecido pelos criminosos. Estava selado um ciclo de escalada que, emoldurado pela retórica da “Guerra às Drogas” importada dos EUA, legitimou a militarização do confronto e transformou comunidades em teatros de operação.

Com a demanda por fuzis firmemente estabelecida, a questão passou a ser a oferta. As primeiras fontes de abastecimento foram, paradoxalmente, o próprio Estado. Investigações ao longo dos anos revelaram uma rotina de desvios de armas e munições de quartéis militares e depósitos policiais, transformando arsenais públicos em um mercado fornecedor primeiro para facções e posteriormente para milícias. Casos emblemáticos, como o desaparecimento de 21 metralhadoras de grosso calibre, incluindo as de calibre.50, capazes de derrubar aeronaves, de um quartel do Exército em Barueri (SP), posteriormente recuperadas no Rio, e a venda sistemática de milhares de munições por soldados para o Comando Vermelho, ilustram a profundidade da vulnerabilidade e da corrupção institucional que persiste há décadas. A corrupção ativa de agentes da lei, atuando como verdadeiros traficantes, tornou-se um pilar desse abastecimento.

Integração com o tráfico internacional

Um dos exemplos mais chocantes foi exposto pela Operação Drake, da Polícia Federal, que revelou como policiais civis do Rio de Janeiro, após extorquirem o CV, roubaram 31 fuzis da facção e venderam 29 deles para o grupo rival, o Terceiro Comando Puro (TCP), alimentando diretamente a guerra da qual lucravam.

Paralelamente, as redes criminosas profissionalizaram o tráfico internacional. Os Estados Unidos, com seu mercado de armas vasto e acessível, consolidaram-se como a principal origem indireta de fuzis e armamento pesado, enquanto o Paraguai se tornou o grande entreposto logístico, por onde as armas eram contrabandeadas através de uma fronteira porosa. Para otimizar a operação e mitigar riscos, os traficantes evoluíram do contrabando da arma completa para a importação de peças avulsas, que eram montadas no Brasil por “armeiros” a serviço do crime.

Esse “modelo IKEA” de tráfico não apenas dificultava a fiscalização, mas também aumentava drasticamente as margens de lucro: um kit de peças comprado por cerca de US$ 1.000 nos EUA podia ser vendido como um fuzil montado por até US$ 10.000 no mercado ilegal brasileiro. A escala desse comércio tornou-se industrial, com operações policiais desmantelando esquemas que movimentaram cifras bilionárias em alianças entre as maiores facções do país.

Flexibilização da legislação agravou quadro

Um novo e significativo vetor de abastecimento surgiu entre 2019 e 2022, com a ampla flexibilização da legislação de armas promovida pelo governo de Jair Bolsonaro. Mais de 30 decretos e portarias enfraqueceram a política de controle de armas, facilitando o acesso a fuzis e aumentando exponencialmente os limites de compra para a categoria de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs).

O resultado foi uma explosão no número de registros de CACs, que saltou de 171 mil (acumulados em 15 anos) para mais de 549 mil novos registros em apenas quatro anos. O crime organizado rapidamente explorou essa nova fronteira. A categoria CAC transformou-se em um dos principais canais para o desvio de armamento moderno para o mercado ilegal. Criminosos passaram a usar “laranjas” para obter registros legais, adquirir arsenais e repassá-los diretamente para facções e milícias.

Investigações prenderam CACs que movimentaram dezenas de milhares de dólares na compra de volumes de munições e carregadores de fuzil totalmente incompatíveis com a prática desportiva. Entre 2018 e 2023, quase 6.000 armas de CACs foram desviadas para a ilegalidade, um aumento de 68%. Na prática, essa política funcionou como um subsídio não intencional ao poder de fogo do crime, que passou a contar com um mercado doméstico, legal e de baixo risco para se modernizar.

É nesse contexto de demanda incessante e de uma cadeia de suprimentos multifacetada que a descoberta das fábricas em São Paulo deve ser analisada. Elas representam a etapa final e mais sofisticada dessa evolução: a busca pela autossuficiência industrial. Ao dominar a produção, as organizações criminosas se protegem da intensificação da fiscalização em fronteiras e da dependência de fornecedores internacionais.

A capacidade de fabricar “ghost guns” em escala, utilizando maquinário pesado e mão de obra especializada, por vezes em instalações disfarçadas de empresas legítimas, como fabricantes de peças aeronáuticas, é um divisor de águas. Essas armas, sem qualquer registro, quebram a cadeia de rastreabilidade, tornando a investigação criminal exponencialmente mais difícil e garantindo um suprimento constante e anônimo para alimentar conflitos em todo o país. A produção interna não apenas atende à demanda existente, mas também tem o potencial de criar mercados e baratear o acesso a essas armas, intensificando ainda mais a violência.

A prova de que a demanda por fuzis segue em alta, e que a oferta acompanha o ritmo, está nos números. Ano após ano, os estados brasileiros, com destaque para o Rio de Janeiro e São Paulo, batem recordes de apreensão. Em 2024, o Rio de Janeiro retirou de circulação 732 fuzis, o maior número da série histórica do Instituto de Segurança Pública (ISP), iniciada em 2007. São Paulo viu suas apreensões saltarem de 111 em 2018 para 570 em 2024.

Longe de serem apenas um indicador de sucesso policial, esses dados revelam um “paradoxo da apreensão”: um aumento no número de armas retiradas das ruas implica, necessariamente, um volume muito maior que entrou e permanece em circulação, considerando que as estimativas mais pessimistas apontam que apenas 2% do arsenal ilegal é de fato interceptado. Essa estatística sombria demonstra a resiliência das cadeias de suprimento do crime.

Guerra urbana em nova fase

A resposta do Estado, por sua vez, tem lutado para acompanhar essa evolução. A doutrina da “paridade de fogo” levou a uma militarização sem precedentes do policiamento urbano, marcada pela era dos veículos blindados, os “Caveirões”, e pela crescente utilização de helicópteros, inclusive modelos de assalto militar como o Black Hawk, em operações policiais. Contudo, há um reconhecimento crescente de que a guerra não pode ser vencida apenas no campo tático.

Estratégias mais recentes buscam atacar a estrutura do crime organizado, priorizando a investigação, a cooperação entre agências e, fundamentalmente, a asfixia financeira. A criação de Forças-Tarefa Integradas (FICCOs) e o foco na descapitalização, que em 2024 resultou na apreensão de quase US$ 1 bilhão do crime, representam uma mudança doutrinária importante, embora tardia.

A jornada do fuzil, do seu surgimento nas disputas de varejo do tráfico carioca até sua produção em série no polo industrial paulista, demonstra a impressionante capacidade de inovação e adaptação do crime organizado. Cada ação do Estado foi seguida por uma reação estratégica que abriu novas frentes de abastecimento.

A descoberta das fábricas clandestinas não é o fim da história, mas um alerta contundente de que a guerra urbana no Brasil entrou em uma nova fase, mais autônoma, resiliente e industrializada. O desafio para as forças de segurança agora transcende o confronto tático e a fiscalização de fronteiras; ele exige um combate focado em inteligência, descapitalização financeira e, crucialmente, na capacidade de desarticular as cadeias produtivas que transformaram o fuzil em um produto de fabricação nacional para o crime. A guerra contra o poder do fuzil não será vencida com mais fuzis, mas com uma adaptação estratégica que seja, no mínimo, tão inteligente e implacável quanto a do adversário que enfrenta.

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