Pandemias aprofundam desigualdades. Desigualdades tornam sociedades mais expostas a pandemias. Essa é a conclusão central do relatório lançado em novembro pelo Conselho Global sobre Desigualdades, Aids e Pandemias, ligado ao Unaids/ONU.
No próximo dia 16 de dezembro, a versão em português desse relatório será lançada em um evento do Unaids, em Brasília.
O documento mostra que as desigualdades não são apenas resultado das crises sanitárias, mas ajudam a torná-las mais frequentes, letais e prolongadas. As evidências reunidas revelam o círculo vicioso: desigualdades internas e globais ampliam a vulnerabilidade das sociedades. E pandemias reforçam essas mesmas desigualdades, dinâmica vista em emergências como as de Covid-19, HIV/Aids, Ebola, Influenza e Mpox.
Minha participação nesse fórum, coordenado por Joseph Stiglitz, Monica Geingos, Michael Marmot e Winnie Byanyima, contribuiu para expressar uma visão do Brasil e refletir com outros países sobre os desafios que temos pela frente.
Os dados do relatório apontam que, no caso da Covid-19, cerca de 165 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza entre 2020 e 2023, enquanto a riqueza dos mais ricos cresceu 27,5%, nos primeiros meses da pandemia. Com contribuições de diversos especialistas, o documento reforça a urgência de enfrentar as raízes sociais das crises sanitárias.
Educação, renda, moradia, condições ambientais
Os determinantes sociais da saúde são um dos principais eixos do relatório. Educação, renda, moradia e condições ambientais definem os grupos mais atingidos pelas emergências.
No Brasil, ainda segundo o relatório do Unaids, pessoas sem educação básica tiveram probabilidade até três vezes maior de morrer por Covid-19 do que aquelas com ensino superior. Populações negras, indígenas e residentes em favelas e periferias também registraram taxas mais altas de infecção e de morte.
As mulheres e, principalmente, as mulheres pretas, enfrentaram mais perdas de emprego e elevação alarmante da mortalidade materna, que saltou de 57,9 óbitos/100 mil nascidos vivos em 2019para 110 em 2021, sendo 194,8 entre mulheres pretas. A fome atingiu 19 milhões de brasileiros em fins de 2020, dobro do que foi registrado em 2009. No Norte do Brasil, o transporte fluvial agravou riscos. Casos semelhantes se repetiram em outros países. Segundo dados do relatório, os adensamentos urbanos e moradias superlotadas elevaram mortes na Inglaterra.
Acesso a vacinas
As desigualdades entre os países também ampliam vulnerabilidades. Quando países de baixa renda não têm acesso a vacinas, diagnósticos ou recursos fiscais, todo o planeta se expõe a riscos. Em 2021, apenas dez países concentravam 75% das doses aplicadas contra a Covid-19, deixando o planeta suscetível ao surgimento de variantes, deixando o planeta mais suscetível ao surgimento de variantes.
Seis meses após a aprovação das vacinas, países de alta renda tinham doses suficientes para cobrir 90% de suas populações prioritárias, enquanto os países de baixa renda tinham o suficiente para cobrir apenas 12% desses grupos.
O relatório do Unaids/ONU estima que essa desigualdade pode ter causado 1,3 milhão de mortes evitáveis. Em contraste à prática do chamado nacionalismo vacinal, o conceito de segurança sanitária se redefine a partir de uma interdependência radical, que precisa refletir uma coordenação da preparação para ampliar o acesso. A desconcentração da pesquisa e desenvolvimento (P&D) e da produção e inovação de bens de saúde são partes essenciais desse processo.
Desmonte na saúde
Fomos um dos países mais atingidos pela Covid-19. Em março de 2022, concentrávamos 10,7% das mortes, apesar de representarmos 2,7% da população mundial, uma proporção quatro vezes maior que a média mundial.
Como sabemos, isso não se deveu apenas ao vírus, mas à gestão desastrosa da pandemia, que desestimulou medidas preventivas, atrasou ações como a compra de vacinas, disseminou desinformação e negacionismo científico, e ainda precisa ser profundamente revisitada para pensarmos em responsabilização.
O que também precisa ser lembrado é a gravidade do desmonte de políticas sociais iniciado em 2016, que fragilizou o SUS e reduziu sua capacidade de resposta. Só entre 2018 e 2020, mais de R$ 70 bilhões deixaram de ser investidos na saúde.
Quando a pandemia atingiu o país, portanto, ela se sobrepôs a crises sociais e econômicas preexistentes, agravando vulnerabilidades históricas.
Se uma região não estiver segura, nenhuma estará. Diante dessas constatações, o relatório do Unaids/ONU enfatiza que respostas sensíveis à desigualdade, com ações intersetoriais e comunitárias, são mais eficazes do que estratégias exclusivamente biomédicas para interromper o ciclo.
Recomendações
Preparar o país e o mundo para emergências futuras exige sistemas de saúde resilientes, gestão qualificada e investimentos contínuos em políticas sociais, ciência, tecnologia e inovação. Reconhece-se hoje que fortalecer a produção local e regional de vacinas, testes diagnósticos, medicamentos e outros insumos, é um caminho essencial para garantir o acesso a bens de saúde.
Ações como essas estão entre as recomendações do relatório do Unaids. A primeira é enfrentar barreiras financeiras globais, com propostas como renegociação de dívidas de países vulneráveis e mecanismos automáticos de financiamento de emergências, evitando políticas de austeridade que comprimem gastos sociais.
A segunda é investir nos determinantes sociais: proteção social, educação, moradia, trabalho decente e redução das desigualdades regionais. Fortalecer a produção local de tecnologias em saúde, tratando conhecimentos essenciais como bens públicos e, de acordo com o estabelecido na Declaração de Doha de 2001, entendendo que o direito à propriedade intelectual não pode se sobrepor ao direito à saúde e à vida é a terceira recomendação.
E por último, mas não menos importante, é construir governança multissetorial, que integre Estado, ciência, comunidades e organizações da sociedade civil.
A partir de 2023, a retomada de políticas sociais permitiu ao Brasil participar da construção desse entendimento expresso no relatório . O fortalecimento do SUS, com a a recuperação de coberturas vacinais, o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde, o da Atenção Primária e da Atenção Especializada, ao lado do fortalecimento de programas sociais como o Bolsa Família, entre outras ações, reduzem vulnerabilidades.
Políticas sociais brasileiras são modelos para o mundo
Apesar desse triste momento de nossa história sanitária, experiências brasileiras oferecem importantes lições. O país construiu o SUS ao longo de mais de três décadas. Único sistema público de saúde a atender mais de 100 milhões de pessoas, orientado pelos princípios de universalidade, equidade e acesso integral, acumulando êxitos históricos no enfrentamento de HIV/Aids, na imunização e na vigilância em emergências como H1N1 e Zika.
Essa trajetória se sustenta também em políticas sociais que atuam sobre os determinantes sociais da saúde. O Bolsa Família é um dos casos mais emblemáticos. Em duas décadas, o programa salvou mais de 700 mil vidas e evitou 8 milhões de internações, reduzindo a mortalidade infantil e a morbidade de doenças como HIV/Aids e tuberculose. Nesse tema, o Brasil exerceu protagonismo internacional, com cooperação Sul-Sul e participação ativa em debates sobre equidade. Não por acaso, a Declaração dos Determinantes Sociais da Saúde leva em seu nome o Rio de Janeiro, cidade que sediou a Conferência em 2011.
Recentemente, somaram-se a nossas conquistas a eliminação da transmissão vertical do HIV/Aids (de gestante para bebê), entre 2023 e 2024, e a redução da mortalidade da doença ao menor nível em 32 anos.
Política externa e solidariedade global
A política externa brasileira atua no mesmo sentido: no G20, no Brics e na COP30. O país defendeu ações integradas entre clima, saúde e desigualdades, além de iniciativas como a Aliança Global contra a Fome e a Coalizão Global para Produção Local e Regional, Inovação e Acesso Equitativo, bem como o fortalecimento do Acordo sobre Pandemias da OMS.
As discussões recentes do G20, inclusive na cúpula de novembro na África do Sul, mostram avanços no reconhecimento de temas centrais do relatório, especialmente nos temas da dívida, produção regional e desigualdades. O Brasil assumiu a presidência pelos primeiros dois anos da Coalizão Global para Produção Local e Regional, Inovação e Acesso Equitativo, com a Fiocruz como secretaria-executiva permanente. Esta liderança define uma governança clara desde o início.
Passos como esse são importantes para avançarmos nas recomendações estruturantes do relatório, colocando na ordem do dia os temas da dívida dos países e sua troca por investimentos em saúde, dando destaque à proteção social e à revisão do atual sistema de propriedade intelectual, entre outras. Há dificuldades nesse caminho, como a ausência dos EUA do Acordo de Pandemias e a persistência do negacionismo científico, que se tornou projeto de poder e se faz presente não apenas em parcelas da população, mas nas políticas públicas de alguns países.
Romper o ciclo desigualdade-pandemia não é somente uma escolha, mas um imperativo ético e prático para garantir a segurança sanitária global. A dimensão biológica das pandemias é evidente, mas as dimensões social, política e fiscal ainda são subestimadas. Ignorar desigualdades é perpetuar riscos quanto a futuras pandemias e impedir que doenças como HIV/Aids e tuberculose sejam finalmente superadas.
O mundo tem uma oportunidade decisiva, com os desdobramentos da COP30 e as agendas em curso no G20 e na OMS. O relatório e a experiência brasileira evidenciam que investir em equidade produz resiliência e que a omissão cobra um preço alto, na economia e sobretudo em vidas.
Precisamos de solidariedade global e de compromisso com avanços sociais, afim de transformar economias e efetivar uma saúde para todos, antes que uma nova pandemia nos lembre, mais uma vez, dos custos da inação.
