Nos relatórios Global Risks de 2024 e de 2025, do Fórum Econômico Mundial, a desinformação foi apontada como um grande risco para humanidade e motivo de grande preocupação a curto e médio prazo.
Nesse contexto, a realidade pode tornar-se cada vez mais complexa e de difícil compreensão, considerando que a plataformização da vida e, principalmente, o encontro dos interesses de grandes corporações de tecnologia com o mercado de produção de conteúdos tem possibilitado o crescimento exponencial da desinformação e a potencialização de seu alcance em vários os países.
Por outro lado, o unilateralismo e a exacerbação das ações de segurança nacional nas agendas políticas dos países, especialmente os EUA, são mencionados pelos entrevistados no Global Risks Report 2025 como provocadores de repercussões negativas em todo o mundo. Tais condutas podem impactar na redução da transparência, tal como acontece em regimes autoritários. E, como enfatiza o relatório, tais medidas podem contribuir para a consolidação de regimes autoritários e para a regressão dos regimes democráticos.
Cabe destacar que a democracia contemporânea como um todo está vivendo crises que colocam em jogo seus princípios liberais e seu conjunto de direitos, deveres e liberdades garantidos pelo Estado republicano. Esse cenário indica que regimes democráticos liberais podem não estar cumprindo com suas promessas de inclusão e igualdade, o que pode estar levando populações de muitos países historicamente democráticos a desilusões em relação a esse tipo de regime.
Desde o final do século 20, ideologias autoritárias têm pouco a pouco conquistado eleitores e espaço público ao redor do mundo. E essas novas configurações de poder político, aliadas a momentos de desilusão com a democracia, têm sido agravadas pela influência crescente das redes sociais e, mais recentemente, da Inteligência Artificial, em narrativas políticas que deturpam fatos e relativizam a verdade em prol de ideais extremistas.
Inteligência Artificial e desinformação em processos eleitorais
Quando relacionamos campanhas de fake news com o uso de tecnologias disruptivas como a Inteligência Artificial, é preciso ter em mente que não há mais amadorismo nesse setor. O mercado da desinformação hoje já possui uma “cadeia produtiva” que abrange desde a criação das mentiras até a execução das estratégias de distribuição de conteúdo.
Para exemplificar o que estamos investigando em termos de desinformação e suas interligações com outros fenômenos, cabe citar os usos de ferramentas de IA em peças de comunicação eleitoral usadas nos pleitos de 2024.
De acordo com o relatório Inteligência Artificial no mundo, do projeto brasileiro “Mídia e Democracia”, da Fundação Getúlio Vargas, ano passado na Índia, um país com quase 1 bilhão de eleitores e onde só 46% da população têm acesso à internet, ferramentas de IA foram usadas recentemente para fabricar vídeos deepfake com imagens de políticos já mortos. Essas montagens foram levadas para praças públicas durante comícios eleitorais, para interferir na opinião pública e direcionar votos.
Segundo o mesmo relatório, o México – que possui em torno de 100 milhões de eleitores e 24% da população sem acesso à internet -, também foi submetido a montagens com deepfakes que circularam em grande velocidade. Durante a campanha eleitoral do ano passado, a atual presidenta Claudia Sheinbaum foi apresentada nas mídias de seu principal adversário como uma “comunista”. Práticas similares são relatadas na pesquisa do Relatório Mídia e Democracia em países como a África do Sul e até nas eleições para o Parlamento Europeu.
O relatório Generative Artificial Intelligence and Elections, do Center for Media Engagement da The University for Texas and Austin, que focou nas eleições do México, Índia, África do Sul e Estados Unidos, identificou como principais usos de IA as ferramentas de tradução, os clones de voz e a edição de vídeos, para além dos processos automatizados de criação e distribuição de conteúdos desinformativos com usos de IA.
No Brasil, o Observatório IA nas eleições, consolidado a partir de uma parceria do ALAFIA-Lab com o Desinformante e o Dataprivacy, elencou os principais usos da IA nas eleições municipais de 2024. Destacamos usos da IA para desinformar, criar polarizações e despertar o ódio, racismo e misoginia. Esses conteúdos exploram a dinâmica das plataformas e se apropriam das lógicas algorítmicas, aliadas à exploração da estética das estruturas digitais.
Diante desses insólitos cenários que excluem a verdade e a realidade, cabe questionar como tais usos podem provocar riscos sistêmicos e impactar as democracias? As respostas indicam os acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023 como um dos exemplos mais gritantes e visíveis de ataque à democracia da história política brasileira. E na ocasião, a invasão de prédios públicos e a quebra de patrimônio foi coordenada por redes sociais digitais.
O crepúsculo das democracias
Tanto o Democracy Index do Economist Intelligence quanto o V-Dem Index, vinculado ao instituto V-Dem da Universidade de Gotemburgo apontam para a deterioração dos regimes democráticos e para uma consequente autocratização crescente do mundo. O índice do Economist Intelligence se baseia em 60 indicadores agrupados em cinco categorias, a saber: liberdades civis; funcionamento do governo; participação política; cultura política e, por fim, processo eleitoral e pluralismo. Em 2011, o Democracy Index qualificou como democracias imperfeitas 54 países, existindo ainda os regimes híbridos localizados em 37 nações e regimes autoritários em 51 países.
O Democracy Index publicado em 2024 situa o Brasil de 2023 ainda na 51ª posição como democracia imperfeita. Contudo, no que concerne ao mundo, o relatório destaca que diferentemente de 2011, quando 11% da população vivia em democracias plenas, atualmente, somente 7,8% residem em países qualificados desse modo. Desde que o índice foi criado em 2006, o Brasil caiu de uma nota, de 7,8 para 6,7; já os EUA caíram de 8,2 para 7,8, saindo de democracia plena para imperfeita.
Por outro lado, e, de acordo com o Relatório V-Dem-Varieties of Democracy 2024, que teve como foco as eleições realizadas em 60 países ano passado, 42 países estariam em processo de autocratização. E somente 18 estariam em processo de democratização. Entre estes o Brasil, cuja população engloba metade de todas as que estão retomando os rumos democráticos. Vale ponderar que entre os 42 países em processo de autocratização, segundo o índice mencionado, encontra-se a Índia, que detém 18% da população mundial e que representa uma grande parte dos 2,8 bilhões de pessoas que vivem nos países que estão em processo de totalização de poder.
Ainda de acordo com o Relatório do V-Dem Institute, o nível de democracia desfrutado pelas pessoas globalmente em 2023 caiu para os níveis de 1985. Em consequência, cerca de 5,7 bilhões de pessoas estão vivendo hoje em autocracias, e com os resultados das eleições de 2024 este número aumentou.
Já o V-DEM Report 2025 recentemente publicado destaca os 25 anos de crescimento da autocratização no mundo. E questiona, em suas conclusões, se a democracia está sendo derrotada globalmente.
Interdependência entre política,capital e tecnologia
O crepúsculo das democracias pode ser analisado a partir da interdependência entre esse sistema político, o capitalismo e a tecnologia digital que constituem um dos mais importantes paradoxos da contemporaneidade. A abertura pública sugerida pela tecnologia digital permitia refletir sobre a exequibilidade dos princípios das democracias, pela primeira vez na história política. Participação, transparência, accountability, debate público, igualdade e liberdade poderiam ser viabilizados através de instrumentos, estruturas, processos e a facilidade digital de estabelecer comunicação, a comunicação pública imanente às democracias.
De fato, a denominada democracia digital surpreendeu epistemologicamente e passou a ocupar espaço nas agendas de pesquisa como demonstra a produção científica e o funcionamento de associações e institutos como o INCT-DD (Instituto Nacional em Ciência e Tecnologia em Democracia Digital). As diferentes configurações das democracias (direta, representativa, participativa e deliberativa) foram beneficiadas por tantos mecanismos capazes de aproximar Estado, sociedade e medias.
Simultaneamente, o fascínio e a facilitação quanto aos usos dessa tecnologia também ampliaram arbitrariamente quaisquer tipos de discursos – sem pudor ético – e criaram um polo industrial global e incontrolável. Uma indústria que afronta a constituição dos países com uma tecnologia tão inovadora quanto distópica, na medida em que altera realidades, desconstitui a verdade, impõe dúvida sobre pessoas e conceitos, desequilibra o processo educacional, influencia novos tipos de comportamento e cria dúvidas sobre o conhecimento e o futuro.
Todo esse cenário e suas intricadas consequências colocaram as democracias em crise, e em quatro dimensões: econômica, política, social e epistêmica.
Vivemos, portanto, um momento em que as democracias existentes vivem diferentes estágios, que podem ser identificados considerando-se a amplitude das desigualdades, a desqualificação da política, a ascensão da extrema direita, a racionalidade submetida às emoções e o poder dos dispositivos digitais definindo os limites da desinformação e da verdade.