O que as pessoas normalmente chamam pelo nome genérico e impreciso de fake news é, na verdade, uma desordem informacional — o complexo ecossistema contemporâneo de informação, formado por três categorias distintas: a dos erros ou enganos; a das mentiras ou fraudes; e a das descontextualizações ou enviesamentos. Mas, quando se volta contra os povos originários brasileiros, essa desinformação apresenta ainda um problema adicional: o silenciamento.
É importante entender que o silêncio não se trata da ausência completa de ruído. Se você desligar sua TV, pausar a música que está ouvindo ou deixar de falar, não haverá uma falta integral de barulho. Os ruídos continuam existindo, mesmo que não os ouçamos bem. Alguns chegam até nós: uma conversa na sala ao lado, um ventilador funcionando, uma mosca zumbindo…
Esses exemplos mostram como, no caso das questões relevantes sobre os povos originários, o silenciamento também não é total. Alguns ruídos e informações continuam chegando, mas não são suficientes para produzir informação com integridade, ou seja, precisa, consistente e confiável.
O sociólogo e historiador Michael Pollak já apontava, no século passado, que o silêncio está mais relacionado à ausência de escuta do que necessariamente à falta de voz. Em outras palavras, pode até existir informação (mesmo que pouca), mas ela não é muito disseminada.
Politização contra indígenas
Tratamos desse silenciamento em trabalhos recentes que publicamos, com foco nas temáticas da desinformação indígena ou na sua circulação nas redes sociais. A pouca informação (silenciamento) contribui para a desordem informacional. Nos estudos, esse aspecto se materializou com a crise humanitária em torno do povo Yanomami.
Silenciados durante o governo de Jair Bolsonaro, foi apenas após o fim da gestão que se revelou a ação de garimpeiros ilegais e a ausência de políticas públicas, que estavam levando esse povo à morte. Essa espécie de extermínio programado foi descoberto com menos de um mês da posse do novo governo.
Mas o que isso tem a ver com a desinformação? Como observado na pesquisa, esse silenciamento se tornou um terreno fértil para propagação de qualquer informação. Tudo poderia ser verdade, pois pouco se sabia.
O Ministério da Justiça e Segurança Pública precisou até desmentir que a população Yanomami tivesse relação com as comunidades indígenas venezuelanas que chegaram ao Brasil como refugiadas, mesmo que isso não devesse ser uma justificativa para uma situação de extrema desnutrição e morte.
A desordem informacional se propagou por causa do silêncio que existia. O silenciamento levou à desinformação. A desinformação levou à morte.
Redes (de desinformação) sociais
O estudo analisou todas as 36 checagens sobre os indígenas, realizadas pela agência de checagem de fatos Lupa, desde a sua criação, em 2015, até 2023. A politização da desordem informacional contra os povos originários aparece diretamente em mais de 80% do material analisado.
As redes sociais têm sido o espaço preferido (89%) para essa disseminação, sobretudo Facebook (72%) e, após a pandemia da covid-19, também o WhatsApp (17%). A desordem informacional contra os indígenas é predominante em formato de texto (89%), embora muitas vezes apareça acompanhado de imagem e vídeo. Essas mentiras em texto estão quase todas no Facebook (96%), enquanto o WhatsApp concentra a desinformação em vídeo.
As principais mentiras sobre os indígenas partem da fala de políticos e apoiadores da extrema direita, que usam essa desinformação para enaltecer o próprio grupo político ou para atacar o que chamam de “esquerdistas”, como o presidente Luís Inácio Lula da Silva, seus ministros e apoiadores.
Quando não vem das redes sociais, a desinformação parte de discursos políticos proferidos em sessões do Congresso Nacional ou publicados em veículos jornalísticos. Diferente dos conteúdos vindos das redes sociais, checados após denúncias à Lupa, a fala de políticos é avaliada por iniciativa dos próprios jornalistas da agência de checagem, explicitando um endereçamento mais explícito dos alinhamentos desses profissionais.
De olho nas mentiras
Os dados relevados pelo estudo se tornam ainda mais preocupantes diante do anúncio de Mark Zuckerberg, dono do grupo Meta – empresa que congrega diversas plataformas, como Facebook, Instagram, WhatsApp e Threads. Em 7 janeiro de 2025, o empresário informou sobre o encerramento da checagem de fatos nessas redes sociais.
A checagem está sendo substituída pelas “notas da comunidade”, transferindo a responsabilidade de verificação para os próprios usuários – um modelo já adotado em outras plataformas, como o X (antigo Twitter). Com o fim das parcerias com agências de checagem de fatos e a continuidade do uso das redes sociais como principais canais de desinformação, o desafio de combatê-la se intensifica.
Os dados da pesquisa demonstram um padrão da desordem informacional contra os povos originários brasileiros é politizada, se espalha via redes sociais e desfruta do silenciamento. Mais do que desinformar, essas mensagens transformam os indígenas em alvo do embate político contemporâneo empreendido nas redes sociais, não só com mentiras, mas com informações descontextualizadas e enviesadas.
Mas é importante notar que existem iniciativas de enfrentamento à desordem informacional dentro desses próprios grupos indígenas, com jovens lideranças promovendo oficinas e produzindo conteúdos. São iniciativas assim que podem transformar o que hoje é apenas ruído em informação precisa, consistente e confiável.