Por dois dias seguidos, 14 e 15 de janeiro de 2025, cerca de um terço dos usuários da internet da Rússia não conseguiu acessar a maioria dos sites ou plataformas. Entusiastas com formação tecnológica, que agora formam um novo tipo de grupo da sociedade civil russa no exterior, disseram, literalmente, que “testemunhamos uma ‘versão demo’ de um desligamento total da internet”. Agora, dizem eles, ficou óbvio que a instituição russa de censura Roskomnadzor é capaz de interromper completamente o tráfego de internet na Rússia a qualquer momento.
O chefe da ONG For Internet Freedom, Mikhail Klimarev, reassaltou o quanto essa interrupção custou à economia russa:
16.8 million dollars. That’s how much one hour of downtime cost the Russian economy. Well, minus one tank, I guess. The Central Monitoring Center [the administrative body responsible for technically censoring all internet providers in Russia] should demand a reward from the Armed Forces of Ukraine. Well done!
16,8 milhões de dólares. Isso é o quanto uma hora de inatividade custou à economia russa. Bem, um tanque a menos eu acho. O Centro de Monitoramento Central [órgão administrativo responsável por tecnicamente ter censurado todos os provedores de internet na Rússia] deveria pedir uma recompensa das Forças Armadas da Ucrânia. Bom trabalho!
Os especialistas têm versões diferentes do que realmente aconteceu. Uma delas foi que o Roskomnadzor tentou instalar atualizações no hardware de censura instalado em todas as operadoras de internet e telefonia móvel na Rússia (existem cerca de 3.500 delas, de acordo com Klimarev), e algo deu errado. Outra versão, pelo programa Tochka no youtube, foi que o Roskomnadzor começou a testar “listas brancas” (permitindo apenas o tráfego para endereços IP da lista) para a RuNet (que é como o segmento russo da internet é frequentemente chamado). Cada interrupção durou cerca de uma hora.
Há vários anos, as autoridades russas restringem o acesso à internet para aqueles que vivem na Rússia. O que começou com o bloqueio de sites e páginas individuais no início dos anos 2000 continuou a bloquear todas as principais plataformas de mídia social (exceto o YouTube) e muitos sites de mídia após o início da invasão russa em grande escala da Ucrânia em fevereiro de 2022. No entanto, o sonho final de criar uma internet nacional (“internet soberana”, conforme definido pela legislação adotada já em 2019 para conceder ao governo russo poderes para separar a Rússia do resto da internet) ainda não foi implementado.
As interrupções de 14 e 15 de janeiro não foram as primeiras “sessões de demonstração” do poder de desligar completamente a internet, mas, até o momento, as maiores em termos do número de usuários afetados.
Uma interrupção de demonstração anterior aconteceu em 7 de dezembro de 2024, quando as autoridades cortaram a internet em três regiões do norte do Cáucaso da Rússia: Chechênia, Inguchétia e Daguestão. Moradores dessas regiões não podiam acessar nenhum site ou plataforma estrangeira, incluindo YouTube, Google e Telegram. Klimarev comentou ao canal de TV Dozhd (TV Chuva) naquela época:
The idea is that Roskomnadzor is trying to test what would happen if all networks connecting the Russian segment of the internet to the foreign segment were completely disconnected. They are testing the functionality of certain services, for example, whether banks work — services that are critically important for the functioning of state bodies. What is currently known is that certain video surveillance systems went offline, banking systems stopped functioning, and VPNs naturally do not work.
A ideia é que o Roskomnadzor esteja tentando testar o que aconteceria se todas as redes que conectam o segmento russo da internet ao segmento estrangeiro fossem completamente desconectadas. Eles estão testando a funcionalidade de certos serviços, por exemplo, se os bancos funcionam — serviços que são extremamente importantes para o funcionamento dos órgãos do Estado. O que se sabe atualmente é que certos sistemas de videovigilância ficaram offline, os sistemas bancários pararam de funcionar e as VPNs naturalmente, não funcionam.
Bloqueio do YouTube
O YouTube, como em muitas partes do mundo, é uma das principais e mais populares plataformas de rede social da Rússia. Para muitas pessoas, substituiu a televisão nos últimos anos, especialmente após a invasão russa da Ucrânia. Embora o conteúdo político, a mídia e as notícias da oposição tenham se mudado inteiramente para lá, alguns antes da censura de guerra de 2022, pelos últimos três anos ou mais o YouTube abriga também o conteúdo de entretenimento que desapareceu dos canais de TV de propaganda russos em tempos de guerra. O segmento russo do YouTube tem canais com milhões de inscritos e audiências desde crianças pequenas assistindo à vida das crianças vloggers ucranianas Katia e Max (que agora vivem nos EUA) até pessoas idosas assistindo como consertar uma máquina de costura.
Porém, as autoridades russas também estão bloqueando o YouTube. Desde o verão de 2024, o tráfego para o YouTube foi desacelerado, de modo que cada vídeo leva um tempo enorme para carregar, mais ou menos como era no final dos anos 1990. As operadoras de telefonia móvel, no entanto, continuaram prestando serviço normal até dezembro de 2024. Mas agora também estão diminuindo o tráfego. De acordo com Klimarev, desacelerar o tráfego é um meio de bloquear a plataforma.
As pessoas na Rússia, de acordo com a recente investigação das mídias de oposição Meduza e The Bell, deveriam migrar para três plataformas russas “nacionais”: VK video, RuTube ou a nova invenção do Russia Today chamada “Plataform.”
No entanto, apesar dos bilhões de dólares gastos para atrair os principais blogueiros russos para esses três, o público nunca os seguiu, e os blogueiros saíram quando o dinheiro acabou. Grande parte dos problemas, de acordo com a investigação, se deu pois essas empresas contavam apenas com o dinheiro do estado, não desenvolvendo suas próprias soluções de sistemas de recomendação ou incentivos de monetização para os usuários. Por exemplo, a página inicial do RuTube lista dentre seus canais “mais populares”, um canal que possui 280 inscritos.
No momento, o YouTube ainda é a plataforma de hospedagem de vídeos mais popular da Rússia, embora agora tenha que ser acessada por meio de VPNs.
Os anos de sorte do VKontakte
Durante anos, o governo russo tem investido dinheiro em plataformas nacionais de redes sociais. O VKontakte (agora VK), inicialmente começou como uma cópia do Facebook (literalmente, seus termos de serviço em várias partes ainda repetem as antigas políticas do Facebook palavra por palavra). Ele foi lançado pelo atual proprietário do Telegram Pavel Durov em 2006 e comprado pelo grupo estatal Mail.Ru em 2014. A plataforma agora é comandada por Vladimir Kirienko, filho do primeiro vice-chefe de gabinete de Putin, Sergey Kirienko, que exerce enorme influência não apenas sobre a guerra russa com a Ucrânia, mas também sobre a censura russa à internet, efetivamente movendo-a para um sistema fechado. O VK é fortemente censurado, tanto por moderadores automatizados quanto por humanos, bem como pela autocensura (pois é possível receber uma sentença de prisão real por uma postagem ou até mesmo por curtir uma postagem).
A intenção portanto, era que o VK substituísse não apenas o Facebook e o Instagram, mas, até o ano de 2024, o YouTube também. Embora fornecesse um substituto para o Facebook para a grande maioria dos usuários (a vantagem óbvia era que o VK estava de fato na Rússia antes do Facebook e fornecia muitos outros serviços, como compartilhamento de músicas e filmes, sem levar em conta os direitos autorais), o Instagram foi impossível de substituir. O tráfego para o Instagram caiu, mas não significativamente: até 2025, pelo menos 37% da população russa está usando VPNs (estas são apenas aquelas que admitem isso em pesquisas públicas), e os usuários do Instagram não são exceções.
O X nunca foi muito popular entre a população russa, e os usuários do X haviam migrado para o Telegram quando o Twitter foi bloqueado em 2022, ou continuaram usando-o através de VPN.
O Bloqueio dos serviços de mensagem
As autoridades russas geralmente começam devagar, para garantir que as pessoas não fiquem muito indignadas ou mesmo surpresas com a perda de serviços. No início de 2023, foi aprovada uma lei que proibia alguns serviços de mensagens de serem usados por bancos ou funcionários do estado. Entre eles estavam: Discord, Microsoft Teams, Skype for Business, Snapchat, Telegram, Threema, Viber, WhatsApp e o aplicativo chinês WeChat. Embora esses aplicativos não tenham sido bloqueados imediatamente (uma tentativa de bloquear o Telegram em 2018, supostamente, falhou), agora há um impulso para bloqueá-los.
Até o momento que escrevo este artigo, o Discord e o Viber já foram bloqueados, assim como o Signal, que nem está na lista. Especialistas prevêem que o WhatsApp seja o próximo da fila. O Discord, como relatou a Meduza, foi bloqueado apesar de aparentemente ter sido usado pelo Exército Russo na invasão da Ucrânia.
2025 será o ano da guerra contra as VPNs
As redes privadas virtuais, ou VPNs, que são ferramentas que contornam esses controles, aumentaram em popularidade na Rússia. De acordo com as estimativas de Klimorev, mais de 50% da população já os instalou. Além disso, a censura na internet também criou um movimento no setor cívico russo, bem como entre os desenvolvedores no exterior, para criar iniciativas tecnológicas de base que se oporiam às paralisações e bloqueios.
Denis Yagodin, diretor de Inovações, Transformação Digital e IA no Setor Público da Teplitsa Socialnyh Technologyi (uma ONG que ajuda o setor cívico a usar novas tecnologias), escreveu sobre isso em um post recente no LinkedIn, reproduzido aqui com permissão.
Once early internet pioneer John Gilmore said “the net interprets censorship as damage and routes around it.” The digital iron curtain descending across Russia has sparked a response from the open source community, showing how grassroots tech initiatives can counter state censorship. As authorities tighten their grip through deep packet inspection (DPI) systems and VPN restrictions, a global network of developers is crafting tools to preserve internet freedom.
While tech giants like Apple comply with VPN apps removal requests from Russian authorities, independent developers are building an arsenal of open source solutions. Tools like GoodbyeDPI and PowerTunnel outsmart surveillance systems by manipulating network packets, while projects such as Piped.video offer alternative pathways to blocked content. Open source firmware like OpenWrt transforms ordinary home routers into censorship-circumvention devices, protecting entire households.
Decentralized communities can adapt faster than centralized control systems. Each new restriction breeds workarounds, creating a perpetual game of digital cat-and-mouse where openness and transparency become powerful weapons against opacity and control. The open source movement’s response shows how shared code and collaborative development can sustain the internet’s original promise of free information flow, even as governments try to fragment and control it.
O antigo pioneiro da internet, John Gilmore, disse que ‘a rede interpreta a censura como dano e a contorna’. A cortina de ferro digital que desce por toda a Rússia provocou uma resposta da comunidade de código aberto, mostrando como as iniciativas tecnológicas de base podem combater a censura estatal. À medida que as autoridades reforçam seu controle por meio de sistemas de inspeção profunda de pacotes (DPI) e restrições de VPN, uma rede global de desenvolvedores está criando ferramentas para preservar a liberdade na Internet.
Enquanto gigantes da tecnologia como a Apple cumprem os pedidos de remoção de aplicativos VPN das autoridades russas, desenvolvedores independentes estão construindo um arsenal de soluções de código aberto. Ferramentas como GoodbyeDPI e PowerTunnel superam os sistemas de vigilância manipulando pacotes de rede, enquanto projetos como o Piped.video oferecem caminhos alternativos para o conteúdo bloqueado. O firmware de código aberto, como o OpenWrt, transforma roteadores domésticos comuns em dispositivos que burlam de censura, protegendo residências inteiras.
As comunidades descentralizadas podem se adaptar mais rapidamente do que os sistemas de controle centralizados. Cada nova restrição gera soluções alternativas, criando um incessante jogo de gato e rato digital, onde a abertura e a transparência se tornam armas poderosas contra a obscuridade e o controle. A resposta do movimento de código aberto mostra como o código compartilhado e o desenvolvimento colaborativo podem sustentar a promessa original da internet de fluxo livre de informações, mesmo quando os governos tentam fragmentá-la e controlá-la.
O próprio Klimarev é um dos fundadores do programa em que qualquer pessoa que vive na Rússia pode obter uma VPN, que depois atende até 200 pessoas que podem obter suas próprias chaves de VPN através dessa pessoa.
Além disso, a mídia russa no exílio, que agora em diversas circunstâncias assume o papel da sociedade civil, também tem seus próprios programas de contornar a censura.
Por exemplo, uma das fontes mais populares, a Meduza, desenvolveu seu próprio aplicativo que não requer o uso de VPNs para acessar as notícias. Ele também possui um serviço, o “link mágico”, que permite que os artigos sejam abertos sem a necessidade de uma VPN. Além disso, a maior parte do texto é posteriormente repetida como arquivos de áudio em plataformas de podcast ou vídeo. Outra grande mídia de oposição, a TVDozhd, está distribuindo livremente uma extensão de VPN para navegadores que funcionaria não apenas com seu próprio conteúdo, mas também com outros sites e plataformas bloqueados.
No entanto, se Vladimir Putin decidir desconectar a internet na Rússia, as VPNs não serão úteis. Como Klimarev explicou em uma entrevista à TV Dozhd:
The principle of VPN operation involves connecting to some foreign service or server and then receiving information. Since all these servers are located abroad, it becomes impossible to connect via VPN. This is essentially the “Cheburnet” [sovereign domestic internet] that has been talked about for a long time. Whether it will work on a nationwide scale is still unclear, but it would deal a serious blow to the country’s economy, which is already in poor condition. In general, we can only welcome this. The worse the economy in Russia, the fewer rockets they will produce, and the less they will shoot at Ukraine.
O princípio da operação de VPN envolve a conexão a algum serviço ou servidor estrangeiro e, em seguida, o recebimento de informações. Como todos esses servidores estão localizados no exterior, torna-se impossível se conectar via VPN. Basicamente, esse é o ‘Cheburnet’ [internet doméstica soberana] de que se fala há muito tempo. Se funcionará em escala nacional ainda não está claro, mas seria um sério golpe para a economia do país, que já está em más condições. No geral, isso não é de todo ruim. Quanto pior a economia da Rússia estiver, menos foguetes irão produzir e disparar contra a Ucrânia.
No momento, o uso de VPNs não é considerado ilegal na Rússia. Mas é proibido anunciar ou distribuir informações sobre eles. Especialistas prevêem que 2025 será o ano da Guerra contra as VPNs no país.
Klimarev diz que, talvez em breve, as autoridades introduzam não listas negras, mas “listas brancas” da RuNet. Isso seria algo similar ao que o Turcomenistão está fazendo com seu sistema de internet, que só permite o acesso a endereços IP específicos que estão nas listas do governo.
Claro, isso só acontecerá se o regime não transformar a Rússia em uma Coreia do Norte, com um desligamento em grande escala de todo o tráfego de internet estrangeiro.