No início de agosto, entre os dias 5 e 6, o país ficou chocado com as imagens da ocupação da presidência do Congresso Nacional por um bando de deputados e senadores. Cenas dessa natureza, jamais vistas na Câmara e no Senado em toda a nossa história, representam claramente mais uma investida truculenta e golpista contra a ordem institucional.
Desta vez, o sequestro — à luz do dia — foi do Legislativo Federal, justamente aquele que se convencionou chamar de “Casa do Povo”. Simbolicamente, o que se viu foi a casa de cada brasileiro sendo tomada, por quase dois dias, por um bando engravatado e violento.
Em alusão à tentativa violenta de golpe de Estado no início de 2023, talvez o único precedente de um episódio de desacato tão absoluto às sedes dos Poderes da República, a jornalista Maria Cristina Fernandes (CBN, Valor Econômico e Globonews) definiu muito bem o episódio como um “8 de Janeiro de paletó”.
O resgate exigido pelos sequestradores, ironicamente batizado de “pacote da paz”, continha três exigências:
1- Anistia total para o líder do bando — preso em regime domiciliar —, e seus comparsas já detidos ou em julgamento por crimes como tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, formação de quadrilha e depredação do patrimônio público;
2 – Impeachment do juiz responsável pelo caso, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF);
3 – Anistia total para aliados circunstanciais — os políticos do Centrão — com o fim do foro privilegiado, permitindo que escapem das investigações conduzidas pelo ministro Flávio Dino contra a farra das emendas parlamentares.
Pedido de impunidade
Para libertar a democracia brasileira do cativeiro, os sequestradores exigiram impunidade total para si e seus aliados, além da punição a quem ousou investigá-los, julgá-los e condená-los.
O episódio desnudou como poucos a essência do fazer político da extrema-direita antidemocrática global na última década. Trata-se de sequestrar a democracia, fechar o regime e instaurar seu projeto autocrático, iliberal e populista. Um projeto forjado pela aliança entre candidatos a autocratas — como Trump, Orbán e Bolsonaro — e magnatas mimados donos das big techs, como observa Giuliano Da Empoli em seu livro A Hora dos Predadores.
A versão brasileira da extrema-direita — que poderíamos chamar de Partido Digital Bolsonarista (PDB) — funciona como uma entidade autônoma dentro do Partido Liberal (PL), numa relação de permanente mutualismo. É uma estrutura voltada à disputa política e eleitoral à margem das instituições e leis formais, sem qualquer preocupação em esconder seu profundo desprezo por elas, como se pode ver no recente episódio.
Política, treta e entretenimento
O proceder violento, típico de milícia ou máfia, veio acompanhado de performances grotescas dos parlamentares-sequestradores. Houve a deputada que se vangloriou de usar sua bebê de quatro meses como “escudo”; senador acorrentado à cadeira da Presidência do Senado; parlamentar que atuou como leão de chácara, controlando a passagem de colegas — entre eles o próprio presidente da Câmara — sob ordens de seu líder partidário, Sóstenes Cavalcante, que admitiu publicamente coordenar a ação. Houve ainda sequestrador visivelmente alterado e, nos casos mais graves, líderes da ala mais radicalizada recusando-se a permitir a retomada da cadeira de Hugo Motta, presidente da Câmara.
À primeira vista, tudo isso pode parecer uma insanidade, mas obedece a um método. Trata-se de uma estratégia que a extrema-direita antidemocrática aplica em todo o mundo. Poderíamos defini-la, preliminarmente, como “atenção e coerção permanentes”. Em um mundo saturado de informações, atrair e reter a atenção as pessoas é uma disputa constante. Daí o procedimento, inspirado em reality shows, que poderíamos resumir como política, treta e entretenimento (PTE).
A busca permanente por episódios controversos, antagonizantes ou irreverentes transmite autenticidade, espontaneidade e verossimilhança, criando fã-clubes e audiências digitais fiéis. Coerção porque, a partir dessa base construída pelo PTE (lembrando: polêmica, treta e entretenimento), formam-se ciber correligionários e ciber militantes permanentemente mobilizados, constituindo uma corrente de opinião digital ruidosa e virulenta capaz de impor, pelo cansaço e pela força, sua visão particular da realidade. Uma minoria majoritária. Foi o que se viu no Parlamento: cerca de 60 deputados parecendo representar a totalidade dos 513.
Questão de método
A mistura de violência e escatologia durante o sequestro não é acaso: é método. Cenas que combinam o dantesco — para atrair atenção — e o violento — para coagir e oprimir — cumprem o objetivo de impor uma vontade política minoritária. É com esse método que a extrema-direita vem chantageando e subjugando a direita institucional brasileira ao longo da última década e, agora, na iminência da condenação de Jair Bolsonaro, busca estendê-lo a todo sistema político nacional, com o apoio calculado de Trump.
Essa atuação se apoia num diagnóstico correto: as preferências políticas e eleitorais se formam não apenas a partir de questões materiais, mas também afetivas. Importa garantir estabilidade e progresso econômico sim, mas não basta. É fundamental apresentar respostas a temas como segurança pública e serviços sociais, e também dialogar com uma dimensão subjetiva dos indivíduos, seus medos e anseios.
É nesse campo que a extrema-direita vem se destacando, explorando uma contemporaneidade não mais “líquida”, como definiu o sociólogo Zygmunt Bauman, mas “vaporosa”, caracterizada pela ausência de marcadores de certeza e segurança para a imensa maioria da população. A corrente combina a reconstrução de um passado idealizado com um horizonte de futuro promissor, assentado na guerra cultural e de costumes, no conforto espiritual e na persuasão em massa. Mescla a autoajuda dos coachs com táticas populistas de comunicação, estimulando a polarização e radicalização.
Ela atrai e aglutina segmentos ressentidos, seja pela perda de privilégios, seja por trajetórias de humilhação e repressão. Por isso é fundamental que os democratas voltem a se encantar com a política e sejam devidamente interpelados em seus desejos e sonhos para que se sintam convocados e impelidos a participar politicamente, com brilho nos olhos, algo quase exclusivo aos seguidores da extrema-direita nos dias atuais.
Síndrome de Estocolmo na política
A condição que favorece o projeto da extrema-direita é a desregulação total das redes sociais. Claramente, a administração Trump II tem como alvo legislações europeias e alemãs, a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal sobre o tema e a experiência do TSE no enfrentamento a ataques ao processo eleitoral, além do julgamento do golpe de 8 de janeiro.
Frente a esse panorama, alguns desafios se impõem. Primeiro, libertar a direita democrática nativa do sequestro da extrema-direita. As manifestações dos governadores pré-candidatos à Presidência na última semana foram constrangedoras, revelando sua capitulação. Movidos por cálculos eleitorais, evitam afrontar Jair para não perder apoio do seu eleitorado, como reféns em síndrome de Estocolmo política.
O governador Tarcísio de Freitas (SP), que já havia se mostrado errático após o anúncio do tarifaço-sanção, chegou ao paradoxo de declarar que a crise foi causada por “agressão” do Brasil aos Estados Unidos — e não o contrário —, criticando Lula e poupando Trump. Com isso, a chamada “direita democrática” parece ter em João Amoêdo seu único representante coerente ao não claudicar na defesa da democracia e soberania nacional, independentemente de suas profundas divergências ideológicas com o atual governo.
A proteção da democracia
Outra ação urgente é punir com rigor os sequestradores do Congresso, preferencialmente com perda de mandato dos mais violentos ou em posição de liderança do assalto. O Legislativo deve dar provas de fortaleza democrática – em especial seu presidente Hugo Motta, que sai com sua autoridade abalada e sombreada por Arthur Lira – e rejeitar toda pauta do “resgate”: nem anistia, nem impeachment, nem fim do foro privilegiado.
Paralelamente, setores democráticos precisam se unir para defender a soberania contra os ataques de Trump, que pode estender a Lei Magnitsky a magistrados do Supremo e lideranças políticas, exigir anistia e elegibilidade de Jair e questionar urnas e resultados de 2026. É preciso também limitar a atuação nociva das Big Techs no país.
Devemos ainda estar atentos às ordens secretas da administração norteamericana reveladas pelo New York Times, que falam de empregar força militar contra cartéis de drogas latino-americanos. Medida que vem na esteira do questionamento de Washington ao Governo brasileiro por não considerar as facções criminosas do país como organizações terroristas, o que permitiria aprofundar sua tentativa de ingerência no Brasil.
Por fim, é essencial proteger o Judiciário, garantindo que todos os envolvidos no 8 de janeiro sejam julgados e os responsáveis punidos conforme a lei. A extrema-direita repete sua fórmula: sem provas, questionou o sistema eletrônico de votação e a higidez do sistema eleitoral; agora, também sem evidências, ataca a investigação, a denúncia e o devido processo legal. Em 2021 e 2022, sem provas, suspeitou a imparcialidade do TSE; agora, novamente sem evidências, suspeita do STF, da PGR e da PF. Se antes insuflou a insurgência violenta em busca de uma GLO, que culminou na invasão da Praça dos Três Poderes, o que poderá vir agora com o suporte da Casa Branca?
Não podemos nos dar ao luxo de repetir o período que antecedeu ao 8 de janeiro de 2023, quando parte expressiva da sociedade e da classe política preferiu não acreditar ser possível uma tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. O golpismo não arrefeceu nem parou. As instituições e forças democráticas devem seguir vigilantes e preparadas. Continua nossa Democracia em xeque.