A epidemia do vírus Zika completa dez anos em 2025. Nesse período, inúmeras pesquisas foram desenvolvidas, sobretudo nas áreas da Saúde, Assistência Social e educação. Entre eles está o trabalho em que eu e uma equipe multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, do governo estadual e de outras instituições estudamos como as redes de ensino e as escolas fluminenses têm se estruturado para receber crianças afetadas pelo vírus durante a gestação. Lembrando que uma parcela significativa delas nasceu com microcefalia e outras manifestações da Síndrome Congênita do Vírus Zika (SCZ).
No estudo, discutimos possibilidades encontradas para a inclusão dessas crianças nas escolas e as dificuldades enfrentadas pelas mães e pelas professoras nesse processo.
A maioria das crianças nascidas com a síndrome apresenta com frequência graves deficiências físicas, sensoriais e cognitivas. E uma parte delas apresenta deficiência múltipla e necessidades complexas de comunicação.
Esse último grupo e suas famílias, principalmente as mães, são justamente com os quais tenho trabalhado nos últimos sete anos. Em minhas pesquisas, acompanho crianças que iniciaram na Educação Infantil e agora estão no Ensino Fundamental I.
Vulnerabilidade histórica e social
Sobre esses dez anos após a epidemia, é crucial sinalizar que eles evidenciaram a vulnerabilidade histórica e social sofrida por famílias pobres, assim como expôs a negligência para com as populações acometidas.
Essa realidade afeta de forma desproporcional as famílias que habitam territórios com baixos índices de desenvolvimento humano e inúmeros problemas sociais, como é o caso da Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro, região fortemente afetada pela Síndrome Congênita do Vírus Zika.
Crianças com deficiências múltiplas
As crianças com as quais temos trabalhado apresentam deficiências múltiplas. Elas afetam de diferentes formas os seus desenvolvimentos, com diversos desdobramentos na qualidade de vida e nas relações com o meio educacional e social.
Tudo isso demanda intervenções educacionais customizadas. Essas intervenções incluem programas de Comunicação Alternativa e Aumentativa (CAA) e outros recursos de Tecnologia Assistiva (TA), de baixo ou alto custo a depender das especificidades do desenvolvimento de cada criança.
Em nossos trabalhos de campo, percebemos que a maioria das crianças demanda suportes especializados, os chamados nas escolas de “profissionais de apoio a inclusão”, “mediadores” ou apenas “cuidadores” permanentes para promover a participação nas atividades de ensino.
Vale salientar que algumas crianças ainda necessitam de profissionais de apoio de enfermagem para alimentar-se adequadamente, ou em casos de crises convulsivas ou outras situações que envolvem a condição complexa de saúde.
Infelizmente, apesar da Lei Brasileira de Inclusão de 2015 que prevê o profissional de apoio integral , ainda não há uma regulamentação sobre as atribuições e a formação adequada para esse profissional tão importante no caso de crianças com deficiências múltiplas.
E a chegada dessas crianças com Síndrome Congênita do Vírus Zika à escola, em turmas comuns de classes regulares da Educação Infantil e, agora, no Ensino Fundamental I, tem apontado um conjunto de demandas, desafios e ações para além das áreas disciplinares, de forma a garantir a sua educação.
Em nossa pesquisa entrevistamos também as mães. E foi muito gratificante saber que para elas a entrada de seus filhos nas escolas afetou de forma positiva o desenvolvimento funcional e a condição de saúde das crianças.
Dificuldades escolares
Por isso, a partir do projeto foi possível inferir que ao acolher a diversidade, a escola amplia as possibilidades de desenvolvimento de alunas e alunos.
Por outro lado, a pesquisa indicou dificuldades imensas das escolas para promover a participação das crianças nas atividades escolares, sobretudo em função das suas necessidades complexas de comunicação.
A esse respeito, a investigação mostrou que a maioria das professoras não recebeu formação adequada para intervir pedagogicamente nesses casos. As escolas possuem dificuldades em promover estratégias para a participação efetiva das crianças com SCZ nas atividades e nas relações de ensino ali estabelecidas. Sobretudo, pela falta apropriada de formação das(os) professoras(es).
Dentre os achados da pesquisa também destacamos a necessidade de elaboração de programas e políticas intersetoriais que envolvam educação, saúde e assistência social, a fim de contribuir para o desenvolvimento integral dessas crianças e melhorar sua qualidade de vida e bem-estar.
Para nós, também ficou claro o papel central que a escola ocupa na vida das crianças e suas famílias como espaço por excelência para a orquestração dessas ações.
Não é com os setores da saúde e da assistência que a família cria vínculos afetivos, é com a escola. Não defendemos a escola como responsável exclusiva pelas ações, mas como instituição que deve fazer parte do planejamento intersetorial de forma colaborativa. A escola não pode e não deve ser apenas mera executora. Muitas vezes, a saúde agenda atendimentos no mesmo horário da escola, desconsiderando-a.
Na transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental, houve uma descontinuidade de frequência e permanência das crianças nas instituições de ensino.
Mapeamento necessário
Compreender esse processo por meio da escuta de famílias nos parece central, pois permitirá identificar as barreiras enfrentadas no acesso, na permanência e na participação no contexto escolar. E contribuir para o aprimoramento das políticas públicas voltadas à educação inclusiva.
Acreditamos na importância de um mapeamento mais completo com dados sobre as crianças, agora no Ensino Fundamental I: se permanecem ou não na escola e, caso não permaneçam, por quê?
Após 10 anos de epidemia, podemos dizer que as famílias ainda enfrentam, juntamente com as instituições de ensino, grandes desafios para garantir a educação efetiva dessas crianças.
Faltam investimentos e programas de formação de professores nessa área. Falta clareza sobre os suportes adequados para a inclusão delas nas escolas. E mais: os programas intersetoriais são frágeis.
Escuta atenta
Nossas pesquisas evidenciaram que as famílias, sobretudo, as mães, sempre precisam ser ouvidas. É necessário conhecer suas histórias e trajetórias de vida marcadas pela epidemia do Zika. Compreender melhor suas condições sociais, as diferentes formas de abandono que enfrentaram e ainda enfrentam em decorrência do nascimento de seus filhos e filhas. Entender a resiliência em relação à deficiência, e como essas famílias têm buscado seus direitos na organização coletiva em grupos, mesmo que de forma simples, por mensagens de WhatsApp.
Essa troca de experiências e construção de estratégias me afetou profundamente como pesquisadora, e mostrou o tamanho da importância de realizar pesquisas com as pessoas – e não apenas sobre elas.
Agradeço aos financiamentos da Faperj, do CNPq e da Finep. Sem o apoio das agências de fomento, o retrato desse drama não seria tão vivo.