Após dois anos de escalada de violência entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza, um sucessão de notícias positivas parece começar realmente a mudar os rumos das negociações em busca de paz.
Semana passada, o presidente norte-americano Donald Trump anunciou a mediação bem sucedida de um acordo de cessar-fogo. Com ele, os bombardeios em Gaza foram interrompidos, milhares de palestinos iniciaram o movimento de retornar para suas casas (embora muitas delas estejam destruídas). E nesta segunda-feira, dia 13 de outubro, todos os reféns israelenses vivos que ainda eram mantidos em cativeiro pelo Hamas desde 7 de Outubro de 2023 foram devolvidos para suas famílias Israel. Mais que isso, centenas de palestinos aprisionados por Israel foram libertados e puderam, também, se reunir com seus parentes.
Embora esse acordo esteja ainda muito distante de um processo de paz sólido e duradouro (um desentendimento entre Israel e o Hamas sobre o número de corpos de refém mortos que ainda precisam ser devolvidos já se iniciou nesta própria segunda-feira, dia 13), os últimos dias têm sido marcados por cenas de comemoração e alívio por parte da população em Gaza e em Tel Aviv.
Não foi Trump, foi a pressão popular e a resistência civil
Como proponente e mediador do cessar-fogo, Trump tem sido aclamado por muitos como o responsável pelo acordo, chegando a ser apontado como possível candidato ao Prêmio Nobel da Paz, vencido pela líder oposicionista venezuelana Maria Corina.
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Visto que acordos como este precisam da assinatura de chefes de Estado para serem colocados em prática, é comum que pareça mérito deste ou daquele político chegar a uma conquista como essa. Mas não podemos esquecer que as mesmas pessoas envolvidas na aceitação de um consenso entre as partes – os governos de Netanyahu, Hamas e do próprio Trump – foram os que sustentaram a violência do conflito ao longo destes dois anos.
Os verdadeiros responsáveis para que estes mesmos governos tenham sido pressionados a aceitar um acordo foram e são as mobilizações populares. Em Gaza, em Israel e ao redor de todo o mundo. As resistências civis ao longo destes dois anos foram diversas e incessantes. Dentre elas, manifestações e protestos têm sido um espaço central no qual civis ao redor do mundo se posicionam contra os ataques e a violência sofrida pela população palestina por parte do governo e do exército israelenses e pelo retorno dos reféns mantidos em cativeiro em Gaza.
Manifestações sem precedentes até em Israel
Em Israel, manifestações ganharam proporções sem precedentes por todo o país, demandando tanto o fim da ofensiva em Gaza, quanto o retorno dos reféns. Muitos manifestantes têm protestado, ainda, ao governo de Benjamin Netanyahu. De acordo com o ACLED (Armed Conflict Location & Event Data), nestes últimos dois anos ocorreram mais de 2.600 demonstrações críticas ao governo em cidades israelenses, muitas delas tendo mobilizado centenas de milhares de pessoas por todo o país.
Até mesmo em Gaza, com toda a violência enfrentada pela população, palestinos realizaram diversas mobilizações. Em Março de 2025, por exemplo, centenas de manifestantes protestaram nas ruas pedindo a renúncia do governo do Hamas no norte da região. Em Maio, no sul – onde a presença do Hamas é bem forte -, protestos foram levados a cabo por civis palestinos por dias consecutivos.
O impacto da Global Summud Flotilha
A resistência civil ao redor do mundo tem sido igualmente importante e impactante no processo de pressionar os governos locais para se posicionarem em relação à violência em Gaza e também pelo retorno dos reféns em Israel. Na última semana, enquanto o cessar fogo proposto por Trump estava em processo de acordo, os membros da delegação brasileira da Global Summud Flotilha retornaram ao Brasil, após terem sido interceptados ainda em águas internacionais e aprisionados por vários dias em Israel.
Contando com mais de 50 embarcações e delegações vindas de 44 países, o movimento se seguiu a duas tentativas anteriores de chegar à Gaza pelo mar, com o objetivo de quebrar o bloqueio marítimo imposto por Israel e criar um corredor humanitário. De acordo com o próprio site do movimento, esta foi a maior flotilha civil coordenada da História. A Global Sumud Flotilla é, até o momento, uma das iniciativas civis internacionais mais amplamente coordenadas em resposta à violência em Gaza, mas não a única.
Diversas outras ações civis e de caráter não violento têm se desenvolvido ao redor do mundo – como protestos em grandes cidades, campanhas humanitárias e manifestações culturais – que vêm se desenvolvendo desde o início da escalada da violência em 2023.
A própria interceptação da Flotilha desencadeou uma série de protestos em diversas capitais ao redor do mundo, incluindo em Roma, Atenas, Berlim e Buenos Aires.
No Brasil
São Paulo também foi palco de mobilizações, reunindo milhares de manifestantes que pediram pelo fim dos ataques à Gaza, libertação dos ativistas da Global Summud Flotilha que estavam detidos até então e demandando posicionamento do governo brasileiro.
Muitos outros movimentos de resistência civil tem se desenvolvido em Gaza, na Cisjordânia, em Israel e ao redor do mundo, incluindo greves, boicotes e manifestações culturais. Diversos deles, como a Global Sumud Flotilha, são reprimidos violentamente por governos e forças de segurança locais. Ainda assim, estas campanhas seguem sendo coordenadas e desenvolvidas a níveis locais e internacionais pelo fim da violência na região.
A importância estratégica de movimentos de não-violência
Este artigo tem a intenção de debater qual a relevância de realizar ações não violentas em um contexto tão violento, levado a cabo por todo um aparato estatal. Se governos não se mostraram capazes – ou dispostos – a conter as ações de Israel na região, o que podem fazer os civis? E a resposta, embasada pela História, é que os civis podem muito.
Para iniciar esta reflexão, vamos olhar para eventos históricos passados. Podemos usar diversos lugares, temporalidades e contextos no mundo como exemplo: o Apartheid na África do Sul, as Ditaduras Civis Militares pela América Latina, as colonizações na América, na África e na Ásia, a escravidão no Brasil, dentre muitos outros. A forma como a História usualmente é contada tende a nos ensinar que estes processos catastróficos para a humanidade foram resolvidos através de acordos políticos. O que nos é pouco relatado, mas é a realidade, é que tais acordos só aconteceram porque a população civil lutou por muito tempo contra essas opressões.
Não estamos acostumados a olhar para a não-violência como uma estratégia eficiente e isso é proposital. Em primeiro lugar, não interessa aos governos e grupos no poder que os civis percebam a força que possuem por meio da retirada de colaboração e da resistência prática. Outro motivo, complementar a esse, é que a violência vende muito e financia muitos setores – da indústria bélica à mídia. Para quem faz dinheiro a partir da violência, e são muitos grupos, não é interessante que a não-violência seja uma pauta comum. Mas ela deve ser.
O debate acadêmico sobre a não-violência
Para explorar mais a fundo sobre o tema, trago um pouco do debate acadêmico, científico e filosófico sobre o conceito. Ele é utilizado, aqui, de acordo com o trabalho deKurt Schock, por exemplo, que define resistência civil como “o uso sustentado de métodos de ação não violenta por civis engajados em conflitos assimétricos… com oponentes não aversos a utilizar a violência para defender seus interesses”.
A ação não violenta, neste contexto, se refere a “atos políticos não rotineiros que não envolvem violência ou a ameaça de violência”. Esta definição está de acordo, também, com Erica Chenoweth e Kathleen Cunningham, que escreveram sobre resistência civil no número especial que editaram sobre o tema no Journal of Peace Research, definindo o termo como “a aplicação de poder civil não armado, utilizando métodos não violentos como protestos, greves, boicotes e demonstrações, sem utilizar ou ameaçando utilizar mal físico contra seu oponente”.
Judith Butler é outra autora bastante debatida no meio acadêmico, que nos chama a atenção para o fato de que a não-violência tem que ser menos entendida como uma pressuposição moral do que como uma prática política e social contextualizada que culmina em formas de resistência contra formas sistêmicas de destruição. Ela ressalta, também, que a não-violência não necessariamente emerge de um lugar calmo e pacífico da alma.
Muitas vezes, ela surge como uma expressão de raiva, indignação e agressão. A ação não-violenta, neste sentido, não tem necessariamente um embasamento moral (embora ele possa estar presente), mas é adotada como uma estratégia de ação contra um ator que possui uma capacidade armada muito superior. Da mesma forma, ela não representa uma passividade. Muito pelo contrário, ela é uma maneira de civis tomarem ação em contextos de autoritarismo e opressão. Muitos autores, como é o caso da própria Butler, ressaltam que a não violência pode ser, inclusive, agressiva. É exatamente por isso que muitos estudiosos se referem a ela como “luta não-violenta”.
Para expressar a relevância da ação civil em contextos como a atual e profunda violência em Gaza, vale apontar o estudo conduzido por Erica Chenoweth e Maria Stephan, publicado no livro Why Civil Resistance Works(Por que a Resistência Civil Funciona).
Nesta pesquisa, as autoras realizaram análises quantitativas e qualitativas de 323 campanhas desde 1900 até 2006 e constataram que campanhas de resistência civil têm mais chances de terem sucesso do que campanhas violentas. Elas atribuem este sucesso a, principalmente, dois fatores: o primeiro deles, são as menores barreiras para a participação. Movimentos de resistência não violenta, embora sim envolvam riscos, usualmente possuem melhor acesso para participação mais ampla de diversos grupos sociais, independente de raça, gênero e idade, por exemplo.
Isso permite com que elas sejam maiores em números e mais diversificadas em estratégias de atuação. De acordo com as autoras, o outro fator que explica a maior taxa de sucesso é o efeito backfire (tiro pela culatra), que acontece quando ações não-violentas são duramente reprimidas. Apesar de a repressão ser comum, ela impõe um alto custo ao governo, pois tende a fortalecer o engajamento civil e a solidariedade em torno dos protestantes, aumentando a pressão sobre o regime.
Outro questionamento que é bastante usual em momentos de escalonamento da violência é exatamente o de porque usar a não-violência como resposta? A resposta, para além do método servir como uma estratégia planejada e articulada, está no fato de que a ação não-violenta tem um papel importante exatamente pela proposta de romper com o ciclo em questão.
Este é o pensamento levantado também por Butler em sua obra “A Força da Não-Violência”, quando a autora explora o questionamento: “queremos que a violência continue circulando?”. São necessárias práticas e táticas não violentas para romper ciclos violentos, já que, também como ressalta Butler, a vida institucional da violência não pode ser derrubada por uma proibição, mas somente por um ethos e uma prática contra institucional.
Se hoje existe um acordo de cessar-fogo, a população de Gaza está retornando para o local de suas casas, palestinos aprisionados foram libertados e os reféns israelenses voltaram para suas famílias, as resistências civis foram fundamentais – e continuarão sendo para que o acordo seja respeitado.
Se depender dos governos que começaram e apoiaram esta postura violenta até então, não tem porque parar a guerra. Eles estão, de muitas formas, lucrando com ela e alcançando seus objetivos. O que acontece, na prática, é que governantes são pressionados pela população civil a tomarem decisões que acabam entrando para a História como o grande catalisador de mudanças.
Dentre as conquistas que estes diversos movimentos conseguiram até o momento estão: compartilhar informações e manter as atenções em Gaza em termos de engajamento social, na mídia e em redes sociais que buscaram suprimir conteúdos sobre o tema, a conscientização da situação dos reféns que foram mantidos por dois anos em Gaza, pressão política sobre chefes de Estado, desenvolvimento campanhas de apoio humanitário para a população palestina e, claro, a própria tomada de ação e expressão de formas de reagir ao que está acontecendo.
A ação civil é responsável, e muito, pelos acordos políticos que levam conflitos violentos ao fim. O valor destes movimentos é profundo para que um cessar fogo tenha sequer sido discutido entre os países envolvidos. Através deles, grupos civis ao redor do mundo todo deixam claro que estão testemunhando a violência em curso e que não irão se calar ou deixar de agir até que ela tenha um fim.
Se depender apenas de quem está lucrando com a guerra, ela não termina nunca. Governos e chefes de Estado podem ser os responsáveis por trás da assinatura de acordos, mas é necessário uma população civil forte e coordenada que os pressione a fazerem isso.