As mudanças climáticas, a necessidade da transição energética, o salto tecnológico prenunciado pela inteligência artificial e a instabilidade geopolítica abrem uma janela de grandes incertezas, mas também a oportunidade política para que o Brasil lidere a transição rumo a um desenvolvimento inclusivo e sustentável. Porém, a possibilidade para essa liderança e para essa transição passa por reconhecermos o óbvio que vem sendo esquecido: sem Cerrado, não há Amazônia; sem Amazônia e Cerrado integrados, não haverá liderança climática brasileira.
Por isso, defendemos aqui duas ideias centrais: a janela política e tecnológica para o Brasil liderar um novo modelo de desenvolvimento está aberta, mas isso exige abandonar a fronteira rígida que trata o Cerrado como território sacrificável para “salvar” a Amazônia.
Dessas ideias, derivam duas propostas objetivas: fazer da COP 30 uma conferência Amazônia–Cerrado, e criar o Instituto Nacional do Cerrado (INC) para articular ciência, inovação e políticas públicas no bioma. Mais do que uma defesa ambiental, esta é uma proposta de estratégia nacional.
O Brasil dispõe, ao mesmo tempo, de uma sociobiodiversidade singular e de uma capacidade produtiva forjada por ciência, políticas públicas e empreendedorismo. Integrar Amazônia e Cerrado é a condição sine qua non para transformar esses ativos em política de Estado, investimento e prosperidade de longo prazo.
Fronteiras difusas
Como no mundo real não existem as fronteiras claras traçadas nos mapas, as transformações do Cerrado adentram a Amazônia como um contínuo de mudanças no uso da terra, exploração dos recursos naturais e alterações nos padrões de distúrbios, como o fogo. Esse caráter ecotonal/contínuo entre Cerrado e Amazônia — com gradientes de uso da terra e alterações nos regimes de fogo — é bem documentado na literatura.
A preocupação com o futuro da Amazônia precisa incorporar, portanto, o fato inescapável de que ela não é uma entidade isolada. E que está, sim, intimamente conectada a outros territórios. Entre os quais o Cerrado é sem dúvida o mais fundamental.
Rios voadores
Essa conectividade entre os biomas é essencial para compreender a questão climática. O movimento de massas de ar entre o Equador e os trópicos conecta climaticamente o Cerrado e a Amazônia por meio daquilo que foi chamado de “rios voadores”. A evapotranspiração amazônica alimenta essas correntes e aumenta a precipitação a jusante. Por outro lado, o desmatamento enfraquece esse mecanismo, com impactos diretos no regime de chuvas do Centro-Oeste e, portanto, sobre a agricultura. Sem esse entendimento, soluções locais podem ser inefetivas. A compreensão adequada desse sistema, em contraposição, possibilita que soluções locais tenham impacto regional e global.
Outro ponto crucial onde essa interdependência aparece é o balanço de carbono. Estimativas atmosféricas recentes (2010–2018) mostram a Amazônia como um sumidouro mais fraco do que imaginávamos, com cerca de –0,04 PgC/ano — isto é, uma absorção anual de 40 milhões de toneladas. Mas esse sequestro é neutralizado pelas emissões do Cerrado e da Caatinga, sobretudo por mudanças no uso da terra e incêndios. Em suma: avaliar a floresta sem a savana é perder metade da história.
Política x ecologia
A delimitação dos biomas brasileiros pelo IBGE, em 2005, respondeu muito mais a uma demanda da política pública do que à complexa realidade ecológica do Brasil. Com a ampliação, em 1996, da reserva legal na Amazônia Legal para 80%, e 35% nas áreas de Cerrado dentro da Amazônia Legal, e sua posterior consolidação na MP 2.166-67/2001, passou a haver a necessidade de uma delimitação muito mais simplificada entre os ecossistemas que não deixasse margem a dúvidas sobre a aplicação da lei.
Passamos assim de um mapeamento relativamente mais complexo, que incluía ecótonos, encraves e áreas de tensão ecológica, para uma definição muito mais generalista e simplificadora. Que não considera as reais necessidades ambientais, sociais e econômicas dos territórios, e tem dificultado enormemente essa necessária visão integradora.
Embora a separação entre Cerrado e Amazônia seja uma transição cientificamente embasada, ela é também fruto de decisões humanas e contém algo de arbitrário. A naturalização excessiva dessas linhas acaba erguendo barreiras cognitivas que nos impedem de enxergar o óbvio que aqui reafirmamos:
Não haverá Amazônia sem Cerrado.
Ao mesmo tempo, o Cerrado é o bioma mais pressionado do país: metade de sua área já foi convertida, apenas cerca de 8% está protegida e, em 2024, seu desmatamento voltou a ser o maior entre os biomas (em torno de 652 mil hectares).
A pressão da soja
Toda a pressão que esse sistema sofre já “vaza” na direção da Amazônia. Áreas de contato entre Amazônia e Cerrado estão sendo ocupadas ou já foram ocupadas com o plantio da soja — e a pressão por novas áreas avança em regiões como o Matopiba.
Os lobbies pela redução dos sistemas protetores da biodiversidade, para contenção na criação de terras indígenas e áreas de conservação e as alterações no antigo Código Florestal articulam um pressão cada vez maior por novas áreas para a agricultura e afastam o país da possibilidade de um modelo sustentável.
Sendo o Cerrado o grande produtor dessas commodities, é natural que a falta de áreas nesse sistema gere uma pressão por ocupação de áreas amazônicas.
Mudanças climáticas pioram o quadro
A tendência climática também preocupa: entre 1981 e 2020, o Cerrado sofreu um aquecimento médio de 0,024 °C/ano, queda de –1,72 mm/ano na precipitação e chuvas mais irregulares — uma combinação que intensifica a aridez e afeta agricultura, disponibilidade hídrica e serviços ecossistêmicos. A agricultura já sente: 99% dos 8,1 milhões de hectares de cultivo duplo de soja e milho no Cerrado sofreram com atrasos no início da estação chuvosa, e 61% enfrentaram redução das chuvas.
Um estudo recém-concluído pelo Lapig (Laboratório de Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento da UFG), em parceria com o ONG The Nature Conservancy (TNC), aponta existirem aproximadamente 103 milhões de hectares de vegetação nativa remanescente no Cerrado.
Dessa área, cerca de 32 milhões estão totalmente vulneráveis ao desmatamento, pois não se encontram em unidades de conservação, não são áreas de preservação permanente e excedem os 20% previstos de reservas legais em propriedades privadas. Ou seja: em tese, a legislação permite a sua conversão.
Esses 32 milhões de hectares guardam um estoque total de carbono da ordem de 1,64 gigatoneladas, o equivalente a 2,5 anos de emissões brasileiras nos patamares atuais. Ou preservamos esse carbono no solo e na vegetação, ou ele vira atmosfera, concluiu o estudo.
A responsabilidade do agronegócio
Por isso, é fundamental enfatizar o papel do agronegócio e das reservas legais para a transição que queremos viabilizar.
Um outro estudom, publicado na Science, baseou-se em dados do Cadastro Ambiental Rural para mostrar que essas áreas do Cerrado abrigam 14,5% das espécies ameaçadas de vertebrados. Número que chega a 25% quando se consideram apenas os remanescentes de vegetação.
Enquanto discutimos se a manutenção e recuperação das reservas legais devem onerar ou não o produtor rural, o Cerrado segue desaparecendo em ritmo veloz. Se é um objetivo importante para o país a conservação da biodiversidade e o uso sustentável, é preciso que os proprietários rurais sejam parceiros desse processo.
Para isso, são necessários instrumentos legais que permitam o estabelecimento de um ambiente econômico favorável à sustentabilidade.
Programa Cerrado em Pé
Um passo fundamental foi dado nesse sentido pela aprovação da Lei no 15.042/2024, que instituiu o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa. Merece menção também o Programa Cerrado em Pé, instituído em 2024 pelo estado de Goiás, que já remunera em até R$ 664 por hectare os excedentes de reserva legal preservados e/ou recuperados em propriedades rurais.
Essas estratégias são um exemplo de boas possibilidades, mas é preciso que sejam monitoradas e avaliadas para que as evidências de seu sucesso contaminem o ambiente econômico como um todo e ofereçam novas estratégias de uso do Cerrado. Esse é um bom exemplo de situação onde a existência de um Instituto Nacional do Cerrado pode ter um papel essencial para que a avaliação científica coerente ofereça as melhores informações para os tomadores de decisão governamentais e privados.
A solução para o aumento da pressão por áreas agrícolas está à mão. O Cerrado reúne 50 milhões de hectares de pastagens cultivadas — muitos deles em estágio avançado de degradação — capazes de acomodar a expansão de grãos e de carne sem novos desmatamentos, combinando intensificação pecuária, restauração e conversão dirigida para lavouras onde há aptidão.
Variações possíveis no estoque de carbono
No estudo da TNCque mencionamos acima foram avaliados cenários para a variação potencial em estoques de carbono associada à recuperação de pastagens e à intensificação da atividade pecuária. O estudo associa essa variação também à substituição de parte dessa área de pastagens por soja e à restauração de vegetação natural. Esses cenários tiveram por referência a demanda estimada de soja e carne até 2030. E o estudo concluiu que, até lá, precisaremos aumentar a área plantada com soja em cerca de 3 milhões de hectares. Na produção de carne, estima-se que sejam necessários cerca de 61 milhões de unidades animais.
Mesmo no cenário mais conservador, e após acomodar a área necessária à expansão da demanda, com intensificação da pecuária e aumento da área agrícola, cerca de 9 milhões de hectares ainda podem ser disponibilizados para a restauração de áreas naturais. Com um aumento nos estoques de carbono orgânico totais de 0,1 Gt e 0,24 Gt para 2030 e 2050.Isso significa de 360 a 860 milhões de toneladas de CO2-equivalente que deixariam de ser jogadas na atmosfera.
Considerando o mercado internacional de crédito de carbono e um valor conservador por tonelada de CO2-equivalente, estamos falando em um aporte, até 2030, de aproximadamente 3,2 bilhões de dólares — um grande negócio com perspectivas de ganhos em todas as direções.
Olhar para além da Amazônia: um desafio da COP 30
Uma COP 30 à altura desses desafios e oportunidades colocados acima precisa, portanto, olhar além da Amazônia. Isso não significa diluir especificidades; significa costurá-las num mesmo pano.
Em vez de corrermos o risco de uma conferência “sobre a Amazônia”, é preciso um olhar integrado Amazônia–Cerrado. Que permita discutir uma agenda nacional de pastagens, atrelada a crédito e indicadores de carbono no solo, pagamento por serviços ambientais em escala e debates sobre mecanismos de governança Amazônia–Cerrado.
Tudo isso com assentos para a ciência, o setor produtivo e, de forma qualificada, os povos indígenas e comunidades tradicionais. Não como figurantes, mas como coprodutores de soluções.
Nada disso depende de inventar um país novo. Depende apenas de organizar o que já temos — ciência, dados, gente — e ativar instrumentos de política que já existem ou estão prontos para ganhar escala. Entre eles o Plano ABC+ e o Programa Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas.
Proposta de criação do Instituto Nacional do Cerrado
Para que essa integração deixe de ser promessa retórica, do lado do Cerrado, precisamos de uma instituição-âncora. Propomos, por isso, a criação do Instituto Nacional do Cerrado (INC), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, com a missão, ao mesmo tempo simples e ambiciosa, de ser um centro de excelência para articular conhecimento e orientar a inovação. Subsidiando políticas públicas e atuando como um verdadeiro porta-voz do bioma.
Temos pesquisa e conhecimento de ponta no Cerrado, mas eles não contam ainda com uma instituição de pesquisa de referência. Diferentemente de outros biomas, incluindo a Amazônia, que sozinha abriga três instituições do gênero.
O INC funcionaria nos mesmos moldes de outros institutos nacionais de pesquisa, como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem) e o Instituto Nacional de Pesquisas Oceânicas (INPO).
Estruturado como uma Organização Social (OS), ele teria a estrutura enxuta e flexível necessária para, operando sob as diretrizes estabelecidas pelo Governo Federal, encabeçar esse trabalho de articulação e integração. Já há um movimento em curso hoje reunindo grande parte das universidades e instituições de pesquisa do bioma em prol de sua criação. Esse esforço levou inclusive à criação de um comitê científico de assessoramento instalado na Universidade de Brasília.
Integrar Amazônia e Cerrado não é desfazer fronteiras científicas: é superar barreiras cognitivas que nos fazem aceitar a falsa ideia de um “sacrifício razoável” do Cerrado para salvar a Amazônia. O Brasil tem, aqui, a oportunidade de liderar com pragmatismo: produzir mais e melhor, estabilizar o clima, proteger a água, reconhecer os guardiões do território e dar previsibilidade a investidores. A COP 30 é o momento de fixar esse rumo; o INC, a instituição que nos permitirá sustentá-lo.
