Os avanços nas técnicas de edição genética – especialmente os desenvolvimentos em torno do método CRISPR-Cas9 nos anos 2010 – levantam diversos questionamentos éticos e temores relativos à eugenia – termo controverso que se refere à tentativa de se controlar o perfil genético de uma sociedade.
Com funcionamento semelhante ao de um “editor de texto” de segmentos de DNA, a CRISPR-Cas9 permite cortar e substituir material genético com alto grau de precisão de forma relativamente simples e fácil. Seu uso em seres humanos, porém, é uma questão difícil e complexa.
É o caso das bebês conhecidas pelos pseudônimos de “Lulu” e “Nana”, resultado de polêmico experimento realizado pelo cientista chinês He Jiankui. Nascidas em outubro de 2018, elas tiveram seu genoma alterado para se tornarem imunes ao HIV.
Dez anos depois, é a remoção do cromossomo 21 extra responsável pela Síndrome de Down que gera novas discussões. Em fevereiro passado, o cientista japonês Ryotaro Hashizume, da Universidade Mie, e equipe publicaram um artigo apresentando o uso da CRISPR capaz de acabar com a trissomia do cromossomo 21, permitindo que as células passem a funcionar normalmente. Embora não signifique a cura da Síndrome de Down, indica um futuro em que ela possa ser erradicada.
O “aborto da pessoa”
Sendo agora viável eliminar geneticamente a Síndrome de Down, permitindo à família gerar um bebê “normal”, surge uma questão ética crucial: o “aborto da pessoa”.
Imagine que você depois de entrar em uma máquina de teletransporte aqui na Terra, pouco depois você está na superfície de Marte. Você não sabe explicar como chegou ali, mas ocorre que, pouco tempo atrás, seu corpo foi escaneado pela máquina, destruído e depois reconstruído no planeta vermelho com a matéria local: um corpo exatamente idêntico ao da Terra.
Mas seria essa pessoa em Marte ainda você?
Para o filósofo Derek Parfit, o que garante sermos a mesma pessoa ao longo do tempo é a continuidade psicológica, se as memórias e experiências que nos constituem são idênticas no intervalo de ontem e hoje. No caso, se as memórias do indivíduo em Marte são iguais às daquele que foi destruído na Terra, então eles são a mesma pessoa.
Mas isso parece exigir que a organização física da cópia marciana seja precisamente idêntica à do original terrestre, ou seja, para haver continuidade psicológica, talvez tenha que existir continuidade física. Se houver uma alteração durante o escaneamento e, do outro lado, aparecer um indivíduo significativamente diferente, então é possível não ter havido continuidade psicológica.
Além disso, a substituição das partes físicas terrestres por partes físicas marcianas sugere que a cópia não é idêntica ao original. Nesse sentido, a edição genética não seria diferente do teletransporte, pois, assim como a máquina substitui o material original por outro – destruindo a pessoa no processo – ela, em hipótese, faria o mesmo.
Um contexto hipotético
Suponha, dessa vez, que um casal “grávido”, após descobrir por meio de exames que o embrião possui a trissomia do cromossomo 21, seja apresentado à possibilidade de editar geneticamente o embrião por meio da remoção do cromossomo extra. A edição é feita e o bebê nasce saudável. Mas o bebê que nasceu é o mesmo que foi concebido? Ou um novo indivíduo substituiu o anterior?
A remoção do material genético pode não ter apenas “curado”, mas, na verdade, eliminado uma pessoa e gerado outra em seu lugar. Se mudanças na organização do corpo produzem mudanças psicológicas, é plausível que a edição de um embrião com trissomia 21 resulte na substituição de uma pessoa por outra totalmente diferente.
Podemos dizer que o bebê Jhonatan-1, portador da Síndrome de Down, existe até certo ponto; depois da edição, nasce Jhonatan-2, uma criança considerada “normal”. A questão, aqui, é: Jhonatan-2 é a continuação de Jhonatan-1 ou uma nova pessoa?
Para Stephen Holland, se a base genética de um embrião é alterada profundamente, o indivíduo emergente não será o mesmo que o original. Já Peter Singer e Helga Kuhse afirmam que, uma vez que as células nos estágios iniciais da embriogênese podem se dividir em dois ou mais indivíduos, não haveria, portanto, identidade pessoal a ser continuada ou mesmo rompida.
Entretanto, essas duas perspectivas se baseiam em um dilema: qual é o limite crítico a partir do qual a edição genética não somente altera uma pessoa, mas a apaga e produz outra?
O limite de Parfit
Para Parfit, quanto maior for a proporção de células substituídas em um corpo, menor é a continuidade entre a pessoa resultante e a original. A partir daí, ele supõe haver uma margem dentro da qual a substituição de um certo número de células não deve comprometer a identidade pessoal. Entretanto, ao transpor esse limite, a pessoa resultante seria diferente.
Assim, o que pode ser chamado de “Limite de Parfit” sugere haver uma quantidade exata de material genético que pode ser substituída sem interromper a continuidade da pessoa; mas, uma vez ultrapassado esse valor, ocorre uma ruptura.
Contudo, não sabemos qual o limite preciso para considerar que a edição genética de um embrião produz uma nova pessoa. É possível que a remoção do trissomia 21 transponha a margem, eliminando o indivíduo com Síndrome de Down e produzindo um indivíduo física e psicologicamente distinto. O que isso significa em termos éticos? É um aborto?
Eugenia e a morte do indivíduo
Independentemente de a edição genética não implicar na morte do corpo, implica possivelmente na morte do indivíduo. Isso porque a pessoa que seria foi substituída por outra qualitativamente diferente. Por esse motivo, a edição genética de fetos com Síndrome de Down pode ser interpretada não como o aborto da vida, mas como o aborto eugênico da pessoa.
Em países europeus, a taxa de abortos de bebês com Síndrome de Down está entre 55% a 90%. Nos Estados Unidos, chega a cerca de 67%. Já no Brasil não há estimativas oficiais, mas isso não significa que não esteja diluída nos altos índices de abortos clandestinos realizados no país.
A edição genética de fetos com trissomia 21 é uma alternativa ao aborto provocado; no entanto, ainda constitui uma forma de eliminação – senão da vida biológica, da pessoa em potencial. Ela possibilita o aparecimento de indivíduos descontínuos com os anteriores. Em razão disso, afirmar que se trata de uma forma de eugenia sutil, ou “sem culpa”, não é exagero, mas um ponto ético a se refletir.