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Educação: Por que a alfabetização deve incluir o desenvolvimento de habilidades digitais

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Educação: Por que a alfabetização deve incluir o desenvolvimento de habilidades digitais

Os dados trazidos pela última pesquisa Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF) são um alerta importante sobre os rumos da educação brasileira. Divulgado em maio deste ano, o levantamento avalia a capacidade de usar a leitura, escrita e matemática para resolver problemas do cotidiano. Pela primeira vez desde a sua criação, em 2001, o INAF incluiu uma avaliação da capacidade de realizar tarefas em ambiente online. A atualização não foi apenas uma atualização técnica, mas o reconhecimento de que o mundo mudou e de que a educação precisará incorporar essa realidade.

Com apoio de instituições como Ibope e IBGE, a pesquisa bienal INAF 2024 mostrou que 29% da população entre 15 e 64 anos podem ser considerados analfabetos funcionais (indivíduos que não aplicam leitura, escrita e cálculo de forma autônoma em situações cotidianas). Outros 27% têm letramento elementar (interpretam textos curtos e realizam operações básicas, mas enfrentam dificuldade em tarefas mais complexas) e 44% são alfabetizados consolidados (dominam leitura e escrita em contextos variados).

Além disso, de acordo com o estudo, somente 23% dos brasileiros de 15 a 64 anos tiveram bom desempenho em atividades como navegar em sites, interpretar botões de ação e avaliar a confiabilidade de fontes. No grupo de analfabetos funcionais, 60% registraram desempenho digital baixo; apenas 3% atingiram o nível mais alto (cerca de 1,13 milhão de pessoas).

Entre os alfabetizados de nível elementar, 67% ficaram na faixa média e 18% chegaram ao nível avançado (aproximadamente 6,32 milhões de usuários). Já entre os alfabetizados consolidados, 45% obtiveram bom resultado em ambiente digital. E mais: ainda que o levantamento tenha revelado uma redução no índice de analfabetismo funcional de 39% para 29% desde o início da série bienal (em 2001), evidentemente foi uma redução modesta.

As consequências da falta de competência digital

Esses dados evidenciam que a maior parte da população, mesmo no grupo que domina a leitura e a escrita no papel, não desenvolveu competências digitais suficientes para atuar com autonomia online. É uma exclusão digital que aprofunda desigualdades em diversos aspectos da vida cotidiana, desde marcar uma consulta a fazer matrícula, checar se um boleto é verdadeiro, recorrer de multa ou atualizar o cadastro de um benefício. Tudo isso acontece hoje em ambientes digitais. Em outras palavras, a fluência digital deixou de ser acessório para se tornar requisito básico de participação social. O digital não é mais um “acréscimo à alfabetização, mas também o campo em que ela se realiza.

Quando dezenas de milhões não conseguem navegar em sites governamentais, preencher formulários online ou avaliar se uma notícia é confiável, as barreiras de acesso se multiplicam a serviços públicos, informações essenciais e até oportunidades de emprego. E elas não afetam todos igualmente, recaindo com mais força sobre quem já enfrenta desigualdades, agravando um ciclo de exclusão que piora à medida que o cotidiano migra cada vez mais para o meio digital.

O panorama traçado pelo INAF também desfaz o mito de que os jovens nascidos “na era das telas” seriam, por si só, usuários proficientes do universo digital. Apesar de apresentarem desempenho melhor do que as gerações mais velhas na leitura de textos impressos, muitos ainda não desenvolvem competências digitais essenciais. Há quem manuseie redes sociais e aplicativos de mensagens com naturalidade, mas se perca ao buscar informações em sites ou concluir tarefas quando a informação está organizada de forma não linear. Ou seja, conhecer a interface não significa compreender a lógica das plataformas nem usar o digital com autonomia.

De modo geral, o INAF apontou uma redução real do índice de analfabetismo funcional, que caiu de 39% PARA 29% desde 2001, o que é pouco e mantêm quase 40 milhões de brasileiros entre 15 e 64 anos sem autonomia para ler, escrever e calcular em situações cotidianas. Trata-se de uma realidade em desigualdades estruturais continuam a determinar quem lê melhor. Essas mesmas dificuldades se refletem no ambiente digital, em que uma minoria alcança autonomia para operar com confiança em plataformas, aplicativos e redes.

Caminhos para o futuro digital

O INAF 2024 nos confronta com uma pergunta incômoda: o que estamos, de fato, ensinando e com que propósito? Em um cenário dominado por inteligência artificial, plataformas onipresentes e discursos acelerados, não cabe resposta automática. A educação precisa reconhecer o desafio digital como parte inerente do letramento contemporâneo. Isso passa, por exemplo, por revisar o currículo escolar para incorporar, de modo transversal, práticas de leitura crítica, curadoria de fontes e produção de conteúdos em múltiplos formatos — textos, vídeos e códigos.

Ao mesmo tempo, faz-se necessária uma mudança nos instrumentos de avaliação, deslocando o foco do produto final para o processo: como o estudante busca, seleciona e interpreta informações em ambientes digitais. Para viabilizar essa transformação, é essencial oferecer formação contínua aos professores e tempo pedagógico dedicado à mediação de ferramentas e algoritmos.

Na mesma linha, decisões políticas devem valorizar a autonomia intelectual acima do mero uso funcional da tecnologia, alocando recursos para combater desigualdades estruturais de escolaridade, como renda, cor e território e garantir acesso equitativo a equipamentos e conectividade. É fundamental nos preocuparmos com o risco de a inteligência artificial ser usada como muleta por quem carece de base sólida em leitura e escrita, o que enfatiza a necessidade de fortalecer, concomitantemente, as habilidades tradicionais e digitais numa estratégia integrada.

A adaptação do sistema educacional

O INAF 2024, portanto, não serve apenas como diagnóstico, mas como um sinal de que é preciso repensar métodos e critérios, de modo que “competência” passe a englobar também a capacidade de atuar com autonomia, criticidade e segurança no ambiente digital. As informações geradas por essa pesquisa reforçam a urgência de revisar políticas educacionais e currículos, incorporando de forma estruturada as competências digitais ao lado do letramento e do numeramento.

O sistema educacional já sinaliza um movimento de adaptação a essas demandas. No Brasil, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) avançou, por exemplo, com o alinhamento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e debates do Ministério da Educação sobre competências digitais. Como a avaliação é o principal motor de mudança nas redes de ensino, essas alterações têm o poder de redefinir o que se ensina em sala de aula.

Internacionalmente, o PISA (Programme for International Student Assessment/OCDE) passou a avaliar competências digitais em 2025. Daqui a quatro anos, em 2029, o programa vai incluir o letramento em mídia e inteligência artificial, cobrando habilidades como navegar com consciência, verificar credibilidade e compreender geradores de texto.

Fato é que o letramento deve ser um projeto de futuro, unindo leitura, escrita e cálculo com a cidadania digital. Isso significa repaginar currículos, dar voz e tempo aos professores na mediação de novas tecnologias, e articular avaliações capazes de revelar não só o produto final, mas a maneira como o estudante navega, critica e constrói conhecimento no mundo online. É preciso investir em políticas públicas que garantam acesso real a equipamentos e conexão, ao mesmo tempo em que valorizam o esforço cognitivo e cultural de cada aprendiz. Só assim deixaremos de perpetuar desigualdades para educar e formar cidadãos críticos, autônomos e preparados para atuar tanto no papel quanto no mundo digital, um dos maiores desafios do século XXI.

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