A vitória de Zohran Mamdani para a prefeitura de Nova York sinaliza, mais uma vez, uma conjuntura de estremecimento do consenso neoliberal e pode ser lida como constitutiva de uma crise de hegemonia nos Estados Unidos. Muitas análises abordam a crise de hegemonia em sua dimensão mundial. Contudo, esta crise também possui uma dimensão interna, relacionada à perda de representatividade das forças políticas dominantes no país. Na concepção do politicólogo Antônio Gramsci, a hegemonia combina consenso e força. O poder se mantém principalmente pela adesão das pessoas às ideias dominantes. A coerção, exercida pelo Estado, entra em ação quando o consenso falha. Assim, ela é necessária para sustentar a dominação, mas deve ser legitimada.
O diagnóstico sobre a existência de uma dimensão interna da crise de hegemonia foi apresentado pela conhecida filósofa crítica Nancy Fraser, da New School University, de Nova York. Ela defendeu esta tese no livro “O Velho Está Morrendo e o Novo Não Pode Nascer”, publicado em 2019, durante o primeiro mandato de Donald Trump.
Naquele momento, Fraser diagnosticava uma fratura do que chama de “neoliberalismo progressista”. Esta ideologia política, dominante nos Estados Unidos do pós-Guerra Fria, baseia em uma combinação de liberalização financeira e políticas públicas de inclusão. Sustenta-se em uma junção de forças sociais do mercado financeiro com ONGs e movimentos sociais por direitos de diversidade, equidade e inclusão.
Na visão da autora, a análise do “neoliberalismo progressista” deve combinar duas dimensões: redistribuição e reconhecimento, ambas essenciais na promoção de justiça social. Àquela altura, no âmbito econômico, as forças políticas nos Estados Unidos pregavam a liberalização financeira e o corte de políticas sociais, em um processo de diminuição dos gastos púbicos para outras áreas que não a defesa e a segurança.
Trump e o fim do consenso liberal
Por outro lado, até a eleição de Trump, a proposta de representatividade, de inclusão de indivíduos de grupos historicamente marginalizados nas esferas de poder, ainda que de formas fragmentadas e pontuais, era uma narrativa relativamente dominante nos âmbitos de tomada de decisão dos EUA.
Exemplos disso são as políticas afirmativas para fomentar a maior inserção de pessoas negras, mulheres e com pessoas com deficiência nas universidades, em empresas privadas ou no serviço público. Estas políticas de representatividade teriam a função de trazer uma aura de legitimidade, em um contexto marcado pelas impopulares reformas pró-mercado. Trump atacou fortemente essas políticas no segundo mandato.
A visão do “neoliberalismo progressista” havia começado a ser contestada com a crise econômica de 2008. Naquele momento, houve uma onda de protestos sociais, a exemplo do Occupy Wall Street, e visões minoritárias gradualmente se fortaleceram nos Partidos Republicano e Democrata. Os grupos de direita contestaram a face progressista da representatividade neoliberal atacando as políticas de inclusão e nomeando-as como responsáveis pela perda da qualidade de vida da população branca de classe média.
Nesta visão, os trabalhadores brancos pouco especializados dos estados industriais dos EUA haviam sido “deixados de lado” por uma política que supostamente favoreceria os migrantes e as elites globalizadas. Esta visão se tornou majoritária no Partido Republicano com a nomeação e vitória de Trump em 2016. Atacava-se especialmente a dimensão do “reconhecimento” presente no “neoliberalismo progressista” e construía-se um discurso que colocava o outro – o migrante, as populações negras e LGBTQIA+ – como inimigos a serem combatidos. Trata-se de uma política fortemente reacionária, que contesta a visão dominante de inclusão, sem propor alternativas ao neoliberalismo econômico.
Por outro lado, no Partido Democrata, tentativas de contestar a face econômica do neoliberalismo e potencializar as políticas de inclusão foram bloqueadas pela estrutura interna do partido. Estas tentativas ecoaram nas campanhas frustradas por nomeação presidencial de Bernie Sanders em 2016 e 2020. O senador propunha combinar políticas mais fortes de inclusão das minorias com políticas para mitigar a crescente desigualdade de renda no país. Sanders, no entanto, foi vencido e o Partido Democrata seguiu a defender o “neoliberalismo progressista”.
Visões dissonantes permaneceram na representação democrata no Congresso dos Estados Unidos. Alexandria Ocasio-Cortez, Ilhan Omar e outros membros do grupo informal conhecido como The Squad propunham que o Partido Democrata se deslocasse para a esquerda. O grupo é frequentemente caracterizado por Trump como comunista, em uma retórica que perpetua a lógica de oposição ao outro.
Políticas de multiculturalidade e investimento social
É desta ala mais progressista dos democratas, que Zohran Mamdani provém. Ele se apresenta como um “socialista democrata” e teve uma campanha marcada pelo carisma, uso das redes sociais e jovialidade. Fez, portanto, ótimo uso das ferramentas digitais, com uma estética aprazível às redes sociais. Mas, fez também propostas que sinalizam por justiça social, tanto no âmbito da redistribuição como no da representatividade.
Mamdami é, ao mesmo tempo, muçulmano, imigrante, de ascendência indiana e africano. Assim, o novo prefeito encarna os ideais de multiculturalidade e os valores das políticas de reconhecimento. Propõe tolerância religiosa, em uma cidade marcada pela islamofobia que se seguiu aos ataques de 11 de setembro de 2001. Escolhe manter Nova York como um porto seguro para os imigrantes e, assim, torna-se um contraponto relevante ao extremismo de Trump.
Contudo, para além disso, Mamdami faz também promessas econômicas que teriam impactos positivos para as classes trabalhadoras nos Estados Unidos. Ele promete, por exemplo, expansão dos serviços de creche e transporte público gratuito. Não teme, portanto, tocar no tabu que é o aumento do gasto social no país, nem se assusta com o rótulo de comunista.
Sua campanha mostra que o afastamento de políticas de centro também pode ter consequências eleitorais positivas para o partido democrata. Expõe que tratar o tema da redistribuição é essencial. Apenas reafirmar políticas identitárias seria fonte de frustração, pois trata-se de uma forma parcial de lidar com a injustiça social.
No entanto, a eleição de Mamdani é também mais um sintoma da fratura dos consensos sociais nos Estados Unidos. O “neoliberalismo progressista” não motiva, nem consegue mais se vender como a única alternativa possível. As visões que se contrapõe a ele vão do reacionarismo mais extremo a propostas que pregam alguma mudança progressista.
Na narrativa de extrema-direita, Mamdani é classificado como comunista em um discurso de antagonismo e divisão social, sendo ele próprio uma encarnação dos inimigos narrativos construído pela extrema-direita, migrante e parte de uma suposta elite globalizada. Neste contexto de “crise da hegemonia”, o senso comum parece fraturado, mas as alternativas faltam em fincar raízes.
