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‘Em busca do tempo perdido’: Por que o mundo que Donald Trump quer controlar não existe mais

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‘Em busca do tempo perdido’: Por que o mundo que Donald Trump quer controlar não existe mais

O título da obra composta por sete volumes (1913-1927) do escritor francês Marcel Proust, “Em busca do tempo perdido”, parece perfeito para a atual cruzada econômica de Donald Trump contra os países que, segundo ele, “roubam a América”, incluindo a China.

Na verdade, o presidente dos EUA está sonhando com um mundo que não existe mais sob o ponto de vista geopolítico e econômico: um “mundo fordista”, que acabou nos anos 70 do século passado.

O sonho fordista de Donald Trump, do tempo em que os EUA eram a principal potência manufatureira e geopolítica do mundo, reflete o desejo de uma parte da população norte-americana, a chamada “América Profunda”, que, segundo alguns analistas, não se adaptou ou aceitou as transformações tecnológicas e o desenvolvimento de parte da periferia do capitalismo a partir dos anos 1970.

Propomos aqui algumas considerações sobre tal processo para entender a lógica da atual “cruzada” econômica de Trump:

1) Fim de uma era

Os EUA estão em declínio. Teóricos como Immanuel Wallerstein (O declínio do poder americano) e Giovanni Arrighi (A crise do atual Ciclo Sistêmico de Acumulação liderado por Washington) criaram uma análise coerente do capitalismo e do papel dos EUA no pós-Guerra. O atual governo norte-americano parece reconhecer esse fato e procura, de todas as formas, reverter tal processo.

Esse esforço ocorre de maneira truculenta e até mesmo irracional, como podemos observar. Os ataques ao BRICS e à China, e até mesmo a aliados históricos como os europeus, por exemplo, atestam a realidade: o aumento de nações cada vez mais distantes da outrora influência geopolítica e econômica de Washington.

Não há como voltar ao período pré-1968. Outro aspecto importante a ser analisado é a saída das indústrias norte-americanas para a Ásia, por exemplo, a partir dos anos 1970, ou até mesmo o seu deslocamento para o México.

O aumento dos custos de mão de obra e os avanços tecnológicos levaram as empresas norte-americanas a procurarem soluções de competitividade. Era a chamada crise do fordismo: salários elevados nos EUA e na Europa, queda na taxa de lucro e produtividade em declínio.

2) O crescimento asiático

O Sudeste Asiático, nos anos 1980/1990, tornou-se a área preferida para receber investimentos em busca de melhores condições: governos com regimes autoritários (a Coreia do Sul, por exemplo) e a China, que experimentava sua abertura nos anos 1980.

As duas nações podem ser apontadas como exemplos. As condições eram privilegiadas para as empresas que estavam chegando: mão de obra barata, fraca ou inexistente sindicalização, leis ambientais permissivas, apoio dos regimes, entre outros fatores.

Ao contrário do que afirma Donald Trump, não foram os países asiáticos que “roubaram” as indústrias ou empregos da população norte-americana: foi o empresariado do país que preferiu aumentar sua rentabilidade e produtividade deslocando suas indústrias para ambientes mais favoráveis à reprodução do capital.

3) O alto custo da economia americana

Os altos salários da indústria norte-americana, em comparação aos de outros países, encareciam os custos finais de produção, por exemplo. Nenhum empresário em sã consciência manteria seus custos elevados frente à concorrência para preservar empregos no seu país por motivos “nacionalistas”.

A atual cruzada trumpista demonstra uma visão deturpada da realidade. O mandatário norte-americano procura construir uma narrativa própria para justificar o atual processo de enfraquecimento econômico e geopolítico do país, retirando das próprias elites norte-americanas os erros na condução do país ao longo do tempo.

É preciso reconhecer que democratas e republicanos são responsáveis por esse processo, pois no século XX comandaram o país sem interrupção. Agora, é necessário admitir que o mundo mudou sob o ponto de vista econômico e, principalmente, geopolítico.

A ameaça econômica de Pequim

Se na Guerra Fria a URSS era uma ameaça ao poderio norte-americano exclusivamente sob o prisma ideológico, no século XXI a China é uma “ameaça” econômica real pela grande capacidade de Pequim, principalmente sob a liderança de Xi Jinping, em possuir um projeto geoeconômico coerente e consistente que conjuga diversificação tecnológica, econômica, militar e geopolítica. A China está construindo um mundo favorável aos seus interesses por meio de seu soft power.

Por outro lado, Donald Trump tenta frear esse processo e procura assumir o papel de protagonista na recondução do país às “glórias” do passado. Contudo, o passado não se repete, e quando se repete, é somente como uma farsa. A cruzada trumpista contra os “infiéis” vai provocar mais problemas do que reverter o declínio. A ausência de um entendimento mais refinado da atual realidade levará, pelas mãos de Donald Trump, ao abismo ainda maior dos EUA frente à China.

Pequim vem passando uma imagem de sobriedade frente aos ataques de Washington, respondendo à altura às ações de Trump, sempre dentro de uma perspectiva de tentativa de diálogo e não de ruptura.

Hoje, a China é a sensatez e a estabilidade frente aos EUA radicalizados e estimuladores da desordem econômica internacional. Beijing se apresenta como uma liderança importante frente aos desafios impostos por Donald Trump.

Sem dúvida alguma, Trump ampliará a perda do soft power construído no século XX e deixará o país ainda mais enfraquecido em termos econômicos e de liderança.

Será o século XXI o “século chinês”? Se depender de Washington nos próximos quatro anos, parece que sim.

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