O The Conversation Brasil publica hoje mais um artigo em parceria com pesquisadores do Movimento Ciência e Vozes da Amazônia na COP 30, uma iniciativa da Universidade Federal do Pará (UFPA), dedicado a promover o protagonismo das vozes amazônicas no contexto das mudanças climáticas, através do diálogo entre a academia e diferentes grupos sociais, movimentos populares e instituições da região, destacando as particularidades locais nas soluções que serão debatidas durante a COP.
Nos últimos 50 anos, a Amazônia sofreu uma perda de áreas nativas de quase 17%, sendo 14% destas decorrentes da conversão em terras agrícolas. Essa perda ameaça a biodiversidade e a resiliência dos ecossistemas naturais, diminuindo a qualidade dos habitats para as espécies, alterando as interações ecológicas e, consequentemente, impactando negativamente nos serviços ecossistêmicos.
As alterações do clima e a perda de habitat podem influenciar a estrutura, a dinâmica e o funcionamento dos ecossistemas, alterando a distribuição das espécies. Esses riscos são ainda mais intensos para grupos mais sensíveis, como as aves e os primatas, que são reconhecidos com excelentes modelos biológicos e bioindicadores da qualidade de habitats.
Além de sua importância na realização de serviços ecossistêmicos (tais como a dispersão de sementes e polinização), esses animais possuem uma elevada diversidade de espécies. Essa diversidade engloba tanto espécies generalistas e tolerantes às atividades humanas quanto espécies com especificidades de nicho e limitadas a determinadas condições do ambiente (geralmente relacionadas a áreas mais florestadas e com poucas alterações antrópicas).
Em virtude desse conjunto de características, estas espécies mais sensíveis aos impactos vêm sofrendo com diminuições em suas áreas de distribuição devido à fragmentação, perda de habitat e a exposição às anomalias climáticas que, na maioria das vezes, resultam em um clima mais quente e com menor precipitação.
Com o desaparecimento dessas espécies, os serviços ecossistêmicos realizados por elas irão desaparecer, colocando em risco muito mais espécies e até mesmo a sobrevivência humana.
Cenários futuros para a vida de aves e primatas
Para entender como as mudanças climáticas podem afetar as aves e primatas da Amazônia, nossos estudos preveem onde essas espécies podem viver no futuro. Utilizamos uma metodologia chamada modelagem de distribuição de espécies, que funciona como um mapa inteligente que combina informações sobre onde essas espécies vivem hoje com dados sobre o clima presente, utilizando métricas como temperatura e intensidade das chuvas. Com essas informações, são identificadas quais áreas são adequadas para sua sobrevivência.
A partir dos dados, criamos cenários para a situação presente e para um cenário futuro, considerando duas condições para as mudanças no clima previstas para as próximas décadas. Utilizamos os cenários futuros criados no Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).
O primeiro cenário é o mais otimista e considera uma emissão mais controlada de gases do efeito estufa, pressupondo um desenvolvimento sustentável equilibrado, com a implementação gradual de políticas de redução de emissões. É o cenário SSP245 do IPCC. O segundo cenário (SSP585) é mais pessimista e considera uma emissão descontrolada de gases do efeito estufa, com a temperatura global atingindo níveis críticos até o final do século.
Utilizamos informações biológicas da distribuição de 43 táxons (grupos de organismos com características comuns) de aves endêmicas e ameaçadas da Amazônia e 35 táxons de primatas brasileiros ameaçados de extinção. Infelizmente, os padrões e predições que encontramos são extremamente preocupantes e a sobrevivência e persistência dessas espécies estão muito ameaçadas.
Aves em risco
No cenário mais otimista, 29 espécies de aves podem perder mais de 80% de suas áreas adequadas, e 20 delas ficarão sem local adequado no futuro. No cenário mais pessimista, a situação se agrava: 40 espécies perderiam mais de 80% de suas áreas, e 36 não teriam ambiente propício para viver.
Espécies já ameaçadas, como o Jacamim-de- costas-escuras (Psophia obscura) e o Mutum-de-penacho (Crax fasciolata pinima), cujas populações já são pequenas e com distribuições geográficas restritas, são as mais vulneráveis. Se as previsões sobre as mudanças climáticas se confirmarem, essas aves podem sofrer perdas dramáticas em suas áreas adequadas, chegando a perder quase todo o seu habitat.
Ainda mais preocupante é o impacto que a perda dessas aves terá sobre a floresta como um todo. Muitas dessas espécies têm um papel fundamental na dispersão de sementes, ajudando a regenerar a vegetação e a manter a diversidade de plantas. A perda de aves frugívoras (que se alimentam de frutas), como a ararajuba (Guaruba guarouba), pode prejudicar a regeneração das florestas, afetando a biodiversidade vegetal e o equilíbrio ecológico.
A diversidade de plantas é essencial para a manutenção de diversos outros serviços ecológicos, como o controle do carbono, a regulação do ciclo da água e o fornecimento de alimentos e recursos para outras espécies da floresta. A perda dessa diversidade pode contribuir para o colapso de outros sistemas ecológicos ou até mesmo para os atuais modelos de desenvolvimento da bioeconomia.
Primatas sem habitat
Para os primatas, a situação não é muito diferente: os resultados são bastante preocupantes. Os dois cenários (tanto o pessimista quanto o otimista) poderão afetar a distribuição das 35 espécies ameaçadas de extinção que ocorrem no Brasil e a eficácia das áreas protegidas para sua conservação.
A maioria dos táxons de primatas experimentaria uma perda significativa das áreas adequadas (maior que 90%), nos cenários pessimistas e otimistas. Isso significa que esses animais, já ameaçados pelo desmatamento, sofrerão ainda mais com a combinação de aumento da temperatura e alterações nos padrões de chuva, que poderão dificultar sua sobrevivência.
Para duas espécies endêmicas da Amazônia brasileira e classificadas como criticamente em perigo, as consequências são ainda mais graves. O sauim-de-coleira (Saguinus bicolor) perderá 98% de seu habitat adequado, enquanto o caiarara (Cebus kaapori) pode perder 100%, especialmente devido à combinação dos impactos das mudanças climáticas e do desmatamento.
Áreas (des)Protegidas
Apesar de o Brasil possuir um dos maiores sistemas de áreas protegidas (APs) do mundo, essas áreas são ineficazes para a proteção dos primatas, tanto no presente quanto no futuro. Além da distribuição desigual das APs entre os biomas e a baixa conectividade entre essas áreas, há ainda a degradação dentro das próprias áreas protegidas. Em 2021, por exemplo, 91% do desmatamento registrado dentro dessas unidades ocorreu em áreas de proteção sustentável.
Dentre as áreas protegidas, as Terras Indígenas têm se mostrado fundamentais na proteção das florestas e da biodiversidade, funcionando como verdadeiros escudos contra o desmatamento. No entanto, essas áreas estão sob crescente pressão devido a atividades ilegais como a mineração, caça e extração de madeira. Entre 2013 e 2021, o desmatamento dentro das Terras Indígenas aumentou 129%, colocando em risco tanto as comunidades que dependem desses territórios quanto a fauna que eles abrigam.
Caso não haja ações urgentes para proteger os habitats naturais e mitigar os efeitos das mudanças climáticas, muitas dessas espécies podem desaparecer. Isso mostra a importância de políticas de conservação eficazes, que incluam não apenas áreas protegidas, mas também envolvam as comunidades locais na criação de estratégias para reduzir os impactos ambientais.