Nas últimas semanas, o Rio Grande do Sul voltou a enfrentar chuvas intensas que despertam memórias recentes da grande enchente de maio de 2024. Só nos últimos dias, o volume acumulado ultrapassou os 350 milímetros em algumas regiões — índice comparável ao do auge da tragédia anterior. Até 21 de junho, ao menos 125 municípios foram afetados, com mais de 6 mil pessoas desalojadas, 1.300 em abrigos e três mortes confirmadas.
Rios como o Jacuí e o Taquari transbordaram perigosamente, atingindo níveis históricos e comprometendo estradas, pontes e acessos. Com alertas vermelhos emitidos para diversas bacias, a situação revela a fragilidade de estruturas urbanas e logísticas que ainda não haviam se recuperado completamente da catástrofe anterior. E é justamente nesse ponto que surgem preocupações menos visíveis, mas igualmente graves: os impactos recorrentes dessas chuvas sobre o sistema alimentar. A seguir, mostramos como as enchentes comprometem não apenas o acesso físico, mas também a qualidade e a regularidade da comida no prato das famílias gaúchas.
Há pouco mais de um ano, o Rio Grande do Sul viveu uma das maiores enchentes de sua história. Foram dias de ruas tomadas pela água, famílias deixando suas casas às pressas e cidades inteiras isoladas. O impacto foi visível nas imagens de casas destruídas e pessoas resgatadas de barco. Mas há um dano que nem sempre se vê nas manchetes: a forma como a enchente destruiu o caminho que a comida faz até chegar na mesa de cada família. As inundações atingiram 95% dos municípios do estado, afetaram aproximadamente 2 milhões de pessoas, deslocaram 581.638 indivíduos, deixaram 800 feridos e resultaram em 178 óbitos. O desastre também comprometeu infraestruturas logísticas cruciais para o abastecimento, como estradas, pontes, centros de distribuição e armazéns frigorificados em um estado que tem 10.882.965 habitantes, sendo o terceiro com menor índice de insegurança alimentar no país, com 18,7% das famílias em situação de insegurança (839 mil lares).
Em um estudo realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para quantificar os estabelecimentos que estavam nas áreas inundadas, um grupo de pesquisadores de que faço parte utilizou dados capturados por satélite das áreas inundadas, disponibilizados pelo Instituto de Pesquisas Hidráulicas da UFRGS, e as informações sobre os comércios que vendem alimentos no Estado, extraídos da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.
Os resultados mostraram que cerca de 16% dos estabelecimentos que vendem alimentos no estado foram atingidos pelas águas. Isso significa mais de 15 mil pontos de venda fechados ou danificados em 92 cidades do estado. Em algumas cidades, quase metade do comércio de comida ficou debaixo d’água. Esse impacto foi ainda mais severo em municípios de pequeno porte, onde a concentração de estabelecimentos comerciais já era baixa.
Os desertos alimentares se agravam
A pesquisa detalhou quais tipos de comércio sofreram mais. Os locais que vendem alimentos frescos, como hortifrutis, açougues e peixarias, foram os mais prejudicados em relação ao total que existe no estado. Quase 30% das peixarias ficaram inoperantes. Hortifrutis e açougues também tiveram perdas expressivas. Um terço das áreas afetadas já eram classificados como desertos alimentares, ou seja, áreas com poucos ou nenhum estabelecimento saudável.
O comércio de alimentos ultraprocessados também foi expressivamente afetado, principalmente bares, restaurantes e outros estabelecimentos que comercializam alimentos prontos para o consumo. No entanto, estes já representavam cerca de 70% dos locais de venda no estado, em linha com a maior abundância desse tipo de produto nas áreas urbanas.
O cenário constatado pela pesquisa é preocupante. A redução da oferta de alimentos frescos, em um meio marcado por uma inflação de cerca de 40% nos preços de alimentos e bebidas entre 2020 e 2023, favorece o consumo de produtos ultraprocessados e coloca em risco a segurança alimentar e nutricional da população, especialmente em comunidades vulnerabilizadas economicamente.
Um fator adicional é que muitas das famílias afetadas pela enchente tiveram seus eletrodomésticos danificados, o que reduziu a capacidade de armazenar e preparar alimentos in natura, favorecendo a compra de produtos prontos ou não perecíveis, muitas vezes ultraprocessados.
Reconstrução desigual e urgência de ações
O grupo de pesquisa tinha clareza da importância de acompanhar o restabelecimento do comércio de alimentos ao longo do tempo, considerando possíveis diferenças na capacidade de recuperação de acordo com o tamanho, categoria e grupo de estabelecimento, bem como possíveis desigualdades sociais no restabelecimento desse comércio. Um ano depois da enchente, é possível observar que as áreas de maior renda foram as primeiras a serem recuperadas, enquanto comunidades periféricas ainda enfrentam dificuldades para reabrir seus pontos de venda ou reabastecer os estoques. As pesquisadoras pretendem verificar essa hipótese em estudo futuro.
Eventos extremos como as enchentes devem se repetir com mais frequência por causa do aquecimento global. Ondas de calor, chuvas fortes e enchentes já são realidade em muitas regiões do Brasil. Por isso, além de conduzir mais pesquisas sobre seus impactos no sistema alimentar, é imprescindível ter um sistema alimentar forte, com produção local, estoques públicos e planos de emergência, para garantia do direito humano à alimentação adequada e saudável em situações de tragédias como essas. Também é urgente incluir a questão do abastecimento de alimentos nos planos de resposta a desastres.
Para garantir que comunidades vulneráveis tenham maior resiliência diante de futuras tragédias e garantir o direito humano à alimentação adequada e saudável em cenários extremos. Isso implica em fortalecer a produção local, diversificar as cadeias de fornecimento e implementar planos de emergência que assegurem o abastecimento contínuo de alimentos, independentemente das condições climáticas ou de infraestrutura.