Todo dia acordamos, tomamos nosso café e seguimos nossa rotina. Olhamos para o céu, onde o Sol ilumina o Planeta de dia, e à noite, a Lua nos acompanha junto de milhares de estrelas. Quase ninguém imagina que tudo o que vemos e tocamos, da xícara ao ar que respiramos, dos planetas às estrelas, representa menos de 5% de tudo o que existe.
O restante está dividido em duas componentes misteriosas que desafiam os cientistas há quase um século: a energia escura e a matéria escura. Mas não se enganem pelo nome: “escura” nesse contexto não se refere à cor, mas sim ao fato de que esses elementos não se encaixam em nada do que já conhecemos.
A energia escura está por trás da expansão cada vez mais rápida do Universo. Já a matéria escura se revela de forma indireta, por exemplo, nas velocidades das estrelas nas galáxias, na forma como grupos de galáxias se distribuem formando grandes estruturas, ou até em sinais dos primeiros instantes do nosso Universo. Todas essas evidências indicam um componente que interage gravitacionalmente e difere da matéria comum.
A hipótese mais aceita é que a matéria escura seja formada por partículas ainda não observadas, ou seja, diferentes das partículas fundamentais que compõem o chamado Modelo Padrão da física de partículas, uma espécie de “tabela periódica” dos blocos mais elementares que formam toda a matéria conhecida.
Um pouco de história
Os primeiros indícios da existência da matéria escura surgiram nos anos 1930 com o astrônomo suíço Fritz Zwicky. Ao estudar a velocidade de dispersão das galáxias no Aglomerado de Coma – um grande aglomerado que contém mais de mil galáxias identificadas –, ele percebeu uma grande inconsistência em seus cálculos.
A massa total de um aglomerado pode ser estimada de duas formas. A primeira é obtida a partir da informação luminosa, contando as galáxias e multiplicando pela massa média estimada de cada uma. A segunda vem da dinâmica gravitacional, ou seja, da força de atração que mantém as galáxias ligadas ao aglomerado.
Usando dados das velocidades das galáxias, Zwicky percebeu que a massa gravitacional encontrada era centenas de vezes maior que a massa luminosa, mas a comunidade científica permaneceu cética em relação aos seus resultados.
Foi apenas na década de 1970 que a hipótese ganhou força, quando os astrônomos Vera Rubin e Kent Ford mediram a velocidade de estrelas em diferentes regiões das galáxias e observaram que, nas partes mais externas, elas se moviam rápido demais para a quantidade de matéria visível. A partir daí, ficou claro que havia, de fato, uma massa misteriosa que não estava sendo contabilizada: a matéria escura.
Desde esses primeiros indícios da existência da matéria escura, os físicos tentam desvendar sua verdadeira natureza. Inicialmente, acreditava-se que ela fosse composta por partículas muito pesadas, e por isso a comunidade concentrou esforços em construir aceleradores cada vez mais potentes, capazes de produzi-las. No entanto, mesmo com o advento do Grande Colisor de Hádrons (do inglês, Large Hadron Collider), nada foi observado.
Portais ocultos
A ausência de comprovação experimental para candidatos pesados levou a comunidade a considerar que a matéria escura poderia ser composta por partículas leves, mas com interações extremamente fracas com o nosso mundo, dificultando sua detecção.
Na prática, gerar essa interação tão suprimida requer a existência de portais ocultos, ou seja, outras partículas que não pertencem ao Modelo Padrão e que atuam como mediadoras entre nosso mundo e a matéria escura. Para entender essa condição, é preciso voltar um passo e discutir algo essencial: como a matéria escura foi gerada no começo do Universo?
Um dos cenários mais aceitos é o chamado congelamento térmico, ou Freeze-out. Nesse processo, nos primeiros instantes do Universo, a matéria escura e as partículas comuns trocavam energia eficientemente, convivendo em equilíbrio. À medida que o Universo foi se expandindo e esfriando, essas interações se tornaram cada vez mais raras, até praticamente cessarem. A partir desse momento, a quantidade de matéria escura ficou “congelada”, permanecendo fixa até os dias atuais.
Há também outro processo, conhecido como Freeze-in, no qual a matéria escura nunca se equilibra com a matéria comum. Em vez disso, ela é produzida gradualmente até que a expansão do Universo torna esse processo ineficiente, fazendo com que sua quantidade se estabilize.
Para conectar a história do Freeze-out com os portais escuros, é preciso lembrar que a quantidade final de matéria escura depende de como ela interage com as partículas comuns. Se essa interação acontecer apenas por meio de forças já conhecidas, como a força fraca, um candidato de matéria escura leve se “isolaria” do restante do Universo cedo demais, resultando em uma quantidade maior do que a observada.
Por isso, os cientistas propõem a existência de novos mediadores leves, partículas que funcionariam como pontes ou portais ocultos entre o nosso mundo e o chamado setor escuro.
Contribuição brasileira
No grupo de física de partículas do Departamento de Física Matemática, da Universidade de São Paulo (USP), investigamos novas formas de explicar a origem e o comportamento da matéria escura. Apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), nosso trabalho busca conectar a teoria aos experimentos, mostrando como diferentes candidatos de matéria escura poderiam deixar sinais detectáveis em experimentos terrestres e em observações astrofísicas ou cosmológicas.
Nossos estudos ajudam a indicar quais direções teóricas são mais promissoras e a orientar a comunidade experimental sobre quais novos experimentos devem ser realizados. É uma contribuição brasileira a um esforço global para entender a composição fundamental do Universo.
Em um dos nossos estudos mais recentes, investigamos exatamente modelos de matéria escura leve com novos mediadores. Existem vários tipos de partículas capazes de criar portais distintos entre o mundo visível e o escuro. Um dos exemplos mais estudados é o de um mediador vetorial, uma partícula parecida com o fóton, a partícula da luz. Essa nova partícula poderia se misturar levemente com o fóton e, assim, agir como uma ponte entre a matéria escura e a matéria comum. Por esse motivo, ela é conhecida como fóton escuro (do inglês, dark photon).
No nosso estudo, seguimos um caminho mais amplo que o modelo mínimo do fóton escuro, que já enfrenta várias limitações experimentais. Em vez de introduzir apenas uma nova partícula, propusemos três partículas do tipo vetorial. Por que três?
A resposta está ligada à estrutura matemática da teoria e às simetrias fundamentais da natureza, que indicam que, ao estender um modelo com partículas desse tipo, o próximo passo natural é incluir exatamente três delas.
O interessante nessa construção é que, ao incluir novas formas de interação entre essas partículas, descobrimos que duas delas se comportam naturalmente como candidatas à matéria escura, enquanto a terceira se mistura com o fóton e atua como mediadora, ou seja, como um fóton escuro. Nossas análises mostraram que esse modelo é capaz de reproduzir a quantidade correta de matéria escura, tanto pelo mecanismo de Freeze-out térmico quanto pelo Freeze-in.
Quando comparamos as previsões do nosso modelo com os resultados experimentais, vimos que parte das possibilidades já foi investigada, mas ainda há uma ampla região a ser explorada por experimentos futuros.
Nesse contexto, o portal vetorial que propomos surge como uma maneira simples e elegante de ampliar a busca por matéria escura e abrir novas possibilidades para testar esse componente misterioso do Universo. Afinal, quem sabe os portais ocultos sejam mesmo a chave para desvendar o enigma da matéria escura.
