Em 28 de julho de 2025, o Times of India publicou uma manchete perturbadora: “Cidade assombrada por cães de rua, as crianças pagam o preço“. Essa única reportagem destacando ataques de cães de rua a crianças brincando na rua motivou uma intervenção judicial extraordinária. Movendo uma ação própria, a Suprema Corte rapidamente elevou a notícia a uma questão de significância constitucional. Dentro de semana, duas ordens drasticamente contrastantes surgiram: a primeira, em 11 de agosto, que ordenava o confinamento permanente de cães de rua em Delhi – Região da Capital Nacional; e a segunda, em 22 de agosto, que mudou o rumo da decisão, reinstalando o modelo capturar-castrar-vacinar-soltar, e estendendo o assunto para uma escala nacional. Os 11 dias separando essas duas ordens revelaram não apenas a tensão entre segurança pública e bem-estar animal como também a fragilidade da estrutura legislativa indiana que trata do cuidado com cães de rua.
A estrutura legislativa: um ato de equilíbrio
A estrutura legislativa da Índia sobre direitos dos animais está principalmente contida no Ato para a Prevenção da Crueldade contra os Animais, de 1960. Ele representa uma evolução radical das práticas de abate coloniais e, pela primeira vez na lei indiana, reconheceu explicitamente os animais como seres sencientes capazes de sentir dor e sofrimento, e portanto, com direito a proteção.
A resistência pública ao abate não é sem precedentes. Em 1832, a cidade de Mumbai foi tomada por greves e protestos contra as leis municipais de abate de cães, um dos primeiros registros de resistência a controles letais. Apesar dessa oposição, as autoridades coloniais formalizaram a política do abate: os cães eram envenenados, mortos a tiros pela polícia nas ruas, ou espancados até a morte. As cidades de Madras e Bangalor até criaram “câmaras letais” nos séculos 19 e 20. Apesar de controversas, essas medidas se tornaram uma parte integral do governo colonial.
Nos anos 1920, os cães continuaram a ser enquadrados como um incômodo público e reforçaram-se as perspectivas que racionalizavam o extermínio. Municípios em toda a Índia, em sua maioria, continuaram com a prática colonial de envenenar e atirar em cães depois do país se tornar independente em 1947. Isso persistiu por décadas antes de defensores dos direitos dos animais começarem a promover o movimento por opções mais humanas.
A mudança decisiva veio em 2001, quando a lei indiana proibiu matar cães como uma forma de controle da população, trocando o termo “cães vadios” por “cães de rua”, e introduziu o programa Controle Natal Animal focado em esterilização e vacinação. O Ato para a Prevenção da Crueldade fortaleceu a proteção: a Seção 3 do Ato estabelece um dever geral de evitar a crueldade, enquanto a Seção 11 torna crime certas formas de maus tratos.
Ao mesmo tempo, o Ato reconhece que o Estado pode controlar as populações em benefício da saúde e segurança públicas, mas não de uma forma que seja cruel. Além disso, nesse âmbito, o governo criou as Regras para Controle Natal (de Cães) em 2001, que foram modificadas para se tornarem as Regras de Controle Natal Animal de 2023. Essas regras seguem perfeitamente o método capturar-castrar-vacinar-soltar: os cães de rua devem ser capturados, esterilizados, vacinados e então soltos no mesmo local. As Regras de 2023 reforçaram precedentes judiciais como o Comitê de Bem-Estar Animal da Índia x Pessoas Pela Eliminação dos Cães Vadios (2015), onde a Suprema Corte proibiu o extermínio arbitrário de cães de rua.
Neste cenário, quando dois juízes em 11 de agosto ordenaram o confinamento permanente de todos os cães, não foi meramente uma mudança na política, mas um ataque direto ao estatuto em si.
Controle dos cães de rua na Índia
Durante décadas, cidades indianas usaram envenenamento e atiravam em cães para temporariamente controlar seus números, e sofriam críticas internacionais pela sua crueldade e ineficácia.
No anos 1980 e 1990, o crescente ativismo pelo bem-estar animal e mudanças globais na ciência veterinária deixaram claro que extermínio não era sustentável nem humano. A mudança decisiva nas políticas veio com as Regras para Controle Natal (de Cães) de 2001, que fez do modelo capturar-castrar-vacinar-soltar a única abordagem legal.
Em teoria, o método capturar-castrar-vacinar-soltar funciona devido a um princípio ecológico auto-limitador: cães esterilizados e vacinados, quando devolvidos aos seus territórios, estabilizam o crescimento da população e impedem a entrada de novos habitantes não castrados. Na prática, no entanto, a implementação falhou. A cobertura da esterilização raramente ultrapassa 30 ou 40% na maioria das cidades, muito abaixo dos 70% de cobertura necessários para efetivamente controlar as populações. A capacidade municipal em Delhi e Gurgaon foi fraca, dificultada por falta de veterinários, abrigos inadequados, e campanhas de vacinação mal feitas.
Apesar destes percalços, o judiciário tem consistentemente apoiado o modelo capturar-castrar-vacinar-soltar, derrubando tentativas de extermínio em massa feitas por municípios em resposta à pressão pública. As Regras de Controle Natal Animal atualizadas de 2023 tentaram corrigir algumas dessas deficiências ao fortalecer a responsabilidade dos municípios, permitindo o confinamento somente em casos muito específicos, e conectando os programas de esterilização às obrigações de saúde pública.
Um cão de rua em Udaipur usa lixo jogado na rua como cama. Imagem por Jay.Jarosz via Wikipedia. CC BY-SA 4.0.
O fiasco de 11 dias
Neste cenário legal e histórico, a ordem de 11 de agosto caiu como um trovão. Ao ordenar o confinamento permanente de todos os cães de rua, a Corte passou por cima de todo o sistema legal e ressuscitou um modelo de contenção já em desuso há muito tempo.
Os dois juízes J.B. Pardiwala e R. Mahadevan colocaram o assunto como um claro conflito constitucional: o direito à vida do Artigo 21 desconsidera o dever do Estado com o bem-estar animal? Em sua ansiedade em proteger os cidadãos, particularmente crianças, eles responderam: sim. A Corte decidiu que todos os cães de rua em Delhi-Região da Capital Nacional fossem permanentemente confinados em abrigos, proibiu sua soltura mesmo depois de esterilizados, e ameaçou com processos por desacato quem tentasse impedir as capturas dos cães.
Autoridades municipais se apressaram em construir abrigos para 5 mil cães em semanas, enquanto as ONGs que resistiam arriscavam serem processadas por desacato. A ordem não apenas contradizia a Regra 11 das Regras de Controle Natal Animal, mas também ignorava a lógica ecológica do método capturar-castrar-vacinar-soltar, na qual cães castrados em territórios familiares impedem a entrada de cães novos e férteis. Durante aqueles 11 dias, o regime de controle animal de Delhi caiu em incerteza e confusão humanitária, administrativa e legal produzida pela própria Corte.
A correção de curso de 22 de agosto
Os juízes Vikram Nath, Sandeep Mehta e N.V. Anjaria entraram em ação para acalmar uma crise feita pela própria Corte. Na ordem de 22 de agosto, o grupo suspendeu as ordens de 11 de agosto e reinstalou o modelo capturar-castrar-vacinar-soltar, criando exceções humanizadas: cães raivosos, agressivos ou perigosamente doentes poderiam ser confinados, mas o restante deveria ser esterilizado, vacinado e solto.
Ao mesmo tempo, a Corte introduziu três inovações. Primeiro, regulou a alimentação pública dos cães ao restringi-la a zonas designadas, procurando balancear a compaixão com a higiene. Também criou um esquema de adoção, permitindo que indivíduos e ONGs removam cães das ruas de forma responsável. E, por fim, passou algumas responsabilidades financeiras para peticionários e ONGs, exigindo suporte financeiro para construir infraestrutura. Ao expandir o caso para todos os Estados e Territórios da União, a Corte demonstrou sua intenção de criar uma política nacional para o controle de cães de rua, algo que faz falta na Índia há muito tempo.
Em direção a uma política nacional humanizada
As ordens contrastantes de 11 e 22 de agosto ilustram os perigos do populismo de soluções rápidas e a importância da moderação jurídica. O controle dos cães de rua não pode ser resolvidos por imposição; necessita de fidelidade legal, base científica e investimento municipal constante. A palavra final da Suprema Corte nesse caso provavelmente vai definir a trajetória da lei de bem-estar animal por décadas. Se implementado à risca, o modelo capturar-castrar-vacinar-soltar pode funcionar, mas apenas se a cobertura de castração aumentar, abrigos forem funcionais e não punitivos, e a alimentação dos cães for regulada com compaixão.
A ordem de 11 de agosto será lembrada como um erro judicial fruto da urgência; a ordem de 22 de agosto, como um momento de correção que colocou a Índia de volta no caminho da governança humanizada e baseada na ciência. O desafio agora é garantir que a ambição da Corte em criar um esquema nacional não fique presa no papel, mas se traduza em uma reforma real, uma que proteja as crianças nos parquinhos, enquanto também honra a vida dos cães que dividem as ruas conosco.







