Talvez você já tenha ouvido falar do experimento do marshmallow: uma criança entra numa sala, recebe um único doce e faz uma escolha entre comer agora ou esperar um pouco para ganhar dois doces. Esse teste, realizado pela primeira vez nos anos 1970, virou um símbolo da chamada “capacidade de adiar gratificação”, sendo associado a sucesso escolar, estabilidade emocional e até melhores empregos na vida adulta.
Essa ideia pegou, sendo amplamente divulgada em livros, palestras, podcasts e matérias na mídia. Afinal, em tempos de alta produtividade, estratégias de autocontrole podem ser vistas como virtude.
Tarefas similares tentam entender o mesmo princípio utilizando balas, pontos e brindes, como a tarefa de escolha de recompensas (Choice Delay Task, CDT). Na CDT, as crianças escolhem entre ganhar um prêmio pequeno e imediato ou esperar para receber algo maior. Essa tarefa vem sendo usada principalmente para estudar o comportamento impulsivo em crianças e em condições como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Esses estudos mostraram que crianças com TDAH tendem a preferir as recompensas imediatas ao invés das recompensas tardias.
O problema é que grande parte desses estudos foi realizada com amostras pequenas, e em contextos muito específicos — geralmente clínicas ou escolas na Europa e nos EUA. E os resultados podem ser contraditórios. Enquanto alguns estudos mostram que crianças com TDAH preferem recompensas imediatas, outros não encontram diferenças. Além disso, estudos longitudinais, ou seja, que acompanham as crianças ao longo dos anos, são muito raros. Esse tipo de estudo é necessário para entender se, de fato, essa escolha diz algo sobre a vida futura.
Estudo brasileiro inédito
Foi justamente isso que nós do CoLAB, uma iniciativa de ciência colaborativa da PUC-Rio, com pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), buscamos investigar em um estudo publicado na revista Journal of Child Psychology and Psychiatry Advances.
Usamos dados da coorte brasileira de alto risco para transtornos mentais, um grande estudo longitudinal com crianças e adolescentes de diferentes contextos socioeconômicos das cidades de São Paulo e Porto Alegre. Ao todo, analisamos 1.917 crianças, comparando seu desempenho na Choice Delay Task com a presença de transtornos mentais e com desfechos de vida avaliados até seis anos depois, incluindo notas escolares, consumo de álcool, gravidez na adolescência, condenações criminais e índice de massa corporal (IMC). Todos esses desfechos foram previamente associados à capacidade de atrasar gratificação.
O que encontramos? Nada. Nenhuma associação entre a escolha por recompensas tardias e desfechos de vida, ou com problemas emocionais ou comportamentais futuros. Crianças que preferiam esperar não se saíram melhor, nem pior. E mais: crianças com TDAH se comportaram de forma muito parecida com as demais na tarefa.
Esses resultados colocam em xeque a suposição de que ser “menos impulsivo” garante sucesso na vida. Também desafiam a ideia de que uma única tarefa de laboratório pode prever trajetórias tão complexas quanto educação, saúde e comportamento social. Eles também nos convidam a refletir sobre o quanto nossos testes psicológicos refletem os contextos culturais em que foram criados.
Outras culturas
Em um estudo recente com crianças descendentes dos maias, o teste do marshmallow também não funcionou como esperado: em vez de esperar pacientemente pelo doce, muitas simplesmente saíam da sala. Por que ficar sentadas ali, quando havia coisas mais interessantes para fazer?
Daí concluir que essas crianças têm funções cognitivas piores seria incorreto. Afinal, estamos falando de crianças que sabem se virar na floresta e sob condições ambientais adversas. Isso desafia nossa ideia do que seria uma “boa cognição” em testes padronizados e ressalta a importância de levar em conta contextos culturais.
Tarefas desenvolvidas no Norte Global, em países ricos e industrializados, podem não fazer sentido em outras realidades, questionando tanto sua validade quanto sua reprodutibilidade. Outros pesquisadores preocupados com essas questões publicaram recentemente o quanto a preferência por recompensas imediatas varia entre diferentes países do mundo, e varia bastante.
Por isso mesmo, vale ressaltar que o estudo original do marshmallow, e que acompanhou as crianças ao longo de dez anos, foi publicado em 1989 e incluiu somente 35 crianças, todas da creche de Stanford. E, a partir daí, avaliaram se elas iriam melhor em testes padronizados como o SAT (equivalente ao nosso ENEM). Essa não parece uma amostra muito representativa da população mundial, certo? Tanto em quantidade quanto em perfil sociodemográfico.
Preferir um doce agora ou depois não é só uma medida de autocontrole. Pode refletir experiências com escassez, insegurança ou simplesmente valores diferentes.
E, se pararmos pra pensar, não é o desempenho em uma única tarefa de laboratório que vai determinar o seu desfecho de vida. Existem muitas variáveis no mundo real, como socioeconômicas e educacionais, que são altamente relevantes, principalmente considerando o contexto de imprevisibilidade em que muitas crianças brasileiras vivem.
Talvez muito mais importante do que a escolha por um marshmallow ou por pontos em um joguinho sejam os fatores sociais e estruturais: acesso à educação, estabilidade financeira, apoio familiar e políticas públicas nacionais voltadas para infância e adolescência.