Imagine o Brasil como uma grande “orquestra”, onde diversos grupos de interesse – ambientalistas, agronegócio, comunidades indígenas, cientistas, setores industriais – representassem instrumentos que devem contribuir para uma “melodia” coletiva.
Em tese, os cidadãos devem ter o direito de formular e expressar livremente suas preferências, e o governo, por sua vez, deve considerar as preferências dos cidadãos igualmente, sem qualquer forma de discriminação sem qualquer forma de discriminação. Ou seja, a democracia deveria garantir que todos os instrumentos fossem ouvidos em harmonia.
Desequilíbrio na representação de políticas ambientais
Na prática, especialmente em questões como licenciamento ambiental, essa orquestra soa desafinada. Alguns tocam tão alto que abafam os demais, enquanto outros nem sequer têm acesso ao palco. O resultado é um desequilíbrio na representação dos interesses que impactam diretamente as políticas ambientais do país.
Nesse cenário, a nova Lei Geral de Licenciamento Ambiental aprovada pelo Congresso no início de agosto está ganhando destaque. O licenciamento é o principal instrumento do governo para avaliar, controlar e autorizar atividades com potencial de causar impactos ambientais, garantindo que elas atendam a requisitos técnicos antes de serem realizadas.
A proposta inicial buscava reformular esse processo, ampliando o uso de licenças simplificadas de autodeclaração e retirando a proteção de terras indígenas e quilombolas ainda não regularizadas. Embora prometa mais agilidade, a lei tem sido criticada por enfraquecer as salvaguardas socioambientais e os direitos das populações tradicionais.
Em casos como esse, vários interesses estão em jogo e grupos organizados entram em ação para tentar influenciar os tomadores de decisão em seu benefício. Por um lado, a nova lei é apoiada por grupos ligados ao agronegócio, à indústria e ao setor de energia. Por outro, associações ambientais e de direitos dos povos indígenas se manifestaram desde o início contra o projeto.
Alguns interesses menos óbvios também tentaram se fazer ouvir em meio a essa orquestra, como a Sociedade de Arqueologia Brasileira. A organização se juntou ao coro dos ambientalistas e apontou os riscos que a lei poderia oferecer para a preservação de sítios arqueológicos ainda não explorados.
Que grupos conseguem falar e quais são ouvidos?
No entanto, a verdadeira questão não é apenas quem pode falar, mas quem é ouvido. Na “orquestra” democrática do Brasil, o desequilíbrio não se refere apenas ao volume, mas à visibilidade e ao acesso. Isso levanta um enigma mais profundo: qual é a cara da população de grupos de interesse e como sua composição molda o processo de formulação de políticas?
Essas são algumas das questões centrais do projeto de pesquisa “Grupos de interesse no Brasil”, conduzido pelas autoras deste artigo com Wagner Pralon Mancuso, da Universidade de São Paulo. A pesquisa baseia-se no Comparative Interest Group-survey Project, que investigou sistemas de representação de interesses em vários países europeus.
Para estudar o caso brasileiro, mapeamos a população de grupos de interesse em nível nacional no país usando bancos de dados do governo. Em seguida, analisamos a população sob a ótica da “ecologia populacional”, abordagem desenvolvida por Lowery e Gray (1996).
Essa abordagem considera que uma população de grupos de interesse tem duas características essenciais: densidade e diversidade. Enquanto a densidade representa o tamanho de uma população, a diversidade se refere à variedade de tipos de organizações que compõem essa população.
Ao examinar esses elementos, a pesquisa procura descobrir quais instrumentos estão presentes, quais dominam o palco e quais permanecem em segundo plano. O intuito é oferecer um quadro mais claro de quão representativo ou excludente é o cenário dos grupos de interesse no Brasil.
Grupos enfrentam concorrência para acessar tomadores de decisão
Com relação à densidade, o estudo constatou que a população brasileira é composta por 3.678 grupos de interesse. Em números absolutos, esse conjunto é maior do que vários de seus equivalentes europeus – embora em termos relativos este cenário mude. Essa alta densidade populacional pode indicar que os grupos de interesse enfrentam forte concorrência para acessar os tomadores de decisão e promover seus interesses.
Além disso, a pesquisa revelou uma alta concentração espacial desses grupos em alguns estados do país. Três em cada quatro grupos de interesse estão sediados em São Paulo (43% de todos os grupos), no Distrito Federal (17,6%) e no Rio de Janeiro (14,3%). Isso indica que, em geral, os estados mais ricos e populosos abrigam mais grupos.
Em relação à diversidade, a pesquisa identificou que o tipo de grupo predominante são as associações de defesa dos direitos sociais, que representam 42,5% do total. Em seguida, estão as organizações relacionadas ao mundo do trabalho, como associações profissionais (17,2%), associações empresariais e patronais (12,8%) e sindicatos (6,8%). Uma parcela menor da população é composta por organizações filosóficas, religiosas, artísticas e culturais.
Classificação usada no estudo é autorrelatada
No entanto, essa classificação da população brasileira de grupos de interesse levanta algumas questões. A classificação usada no estudo é autorrelatada, ou seja, os próprios grupos de interesse declaram o tipo de atividade com a qual mais se identificam. Isso gera dois problemas. Em primeiro lugar, uma parcela significativa da população (10,5%) declarou que realiza atividades associativas não identificadas anteriormente, o que dificulta a identificação dos interesses por trás dessa classe heterogênea e indefinida.
Além disso, não há como garantir que a atividade declarada corresponda às atividades realmente praticadas pela associação. Por exemplo, tanto o Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás quanto a organização ambiental Terra de Direitos declararam ser associações de defesa dos direitos sociais. Enquanto a primeira apoia a nova lei de licenciamento ambiental, a segunda se manifestou contra a legislação.
Essas constatações nos levam a questionar até que ponto a diversificação dos grupos identificados na pesquisa se reflete no caso do licenciamento. Como se trata de uma política ambiental, seria razoável supor que haveria uma presença maior de organizações ligadas à proteção do meio ambiente.
No entanto, a participação significativa de outros setores mostra que o envolvimento dos grupos vai além do alinhamento temático, refletindo também a relevância estratégica da agenda para diferentes segmentos. Avaliar se as questões ambientais atraem um conjunto mais diversificado ou mais polarizado de grupos ajuda a entender não apenas quem participa, mas quem pode influenciar efetivamente o processo decisório.
Após aprovação no Congresso, a nova Lei de Licenciamento Ambiental foi enviada ao Presidente Lula para sanção e uma grande mobilização popular exigiu que ele vetasse o projeto. Atendendo parcialmente à demanda popular, Lula vetou alguns dos trechos mais polêmicos da lei, especialmente aqueles que ameaçavam o meio ambiente e as comunidades tradicionais. Entretanto, a disputa ainda não terminou e, em última instância, a questão pode ser levada à Suprema Corte, que tem a palavra final.
Número de grupos não reflete representação democrática
É evidente que o número de grupos não reflete necessariamente uma representação democrática de diferentes interesses. Portanto, estudar a população de grupos de interesse em um país é fundamental para entender quais interesses são representados, quem tem acesso a recursos e poder e como os grupos agem para tentar influenciar os tomadores de decisão.
O ajuste fino dessa “orquestra” exige mais do que aumentar o número de instrumentos; exige garantir que todos tenham acesso real ao palco. Isso significa democratizar os espaços deliberativos, fortalecer os mecanismos de transparência e participação social e criar condições mais equitativas para que os interesses historicamente marginalizados possam não apenas estar presentes, mas também influenciar efetivamente a formulação de políticas públicas.