O que torna uma cidade atrativa para turistas, investidores e moradores atuais e futuros? Além de fatores como segurança, mercado de trabalho e custo de vida, vemos que a cultura é um ativo cada vez mais estratégico. Cidades como Las Vegas, Liverpool, Seul, Rio de Janeiro e Montreal são exemplos de lugares onde a cultura, sobretudo a cena musical, tem um papel central na sua imagem.
Para entender melhor como a música ao vivo influencia a imagem das cidades, realizamos uma pesquisa comparativa entre Rio de Janeiro e Montreal, duas cidades com fortes tradições musicais, mas caminhos distintos. Com base em 60 entrevistas e na observação de 35 eventos musicais ao vivo, analisamos como a relação entre infraestrutura musical e identidade cultural influencia o branding das cidades.
Duas cidades, duas estratégias
Montreal adota uma estratégia cultural estruturada, fruto de um planejamento de longo prazo. Desde os anos 2000, diferentes níveis de governo e representantes do setor cultural atuam de forma coordenada para consolidar a cidade como metrópole cultural. Essa visão estratégica tem se desdobrado em uma série de planos sucessivos, como Montréal, Métropole Culturelle (2007) e Politique de développement culturel de Montréal (2017–2022).
A cidade investe de forma contínua em políticas públicas para a música, incentivando a criação e a formação artística. Apoio a festivais de grande porte, como o Montreal International Jazz Festival, integram essa estratégia, ampliando a projeção internacional da cidade e dinamizando sua cena cultural. Esse ambiente institucional favorece a convivência entre estilos musicais diversos e atrai artistas, produtores e públicos de diferentes origens, reforçando a identidade multicultural de Montreal. Nesse contexto, a música é tratada como vetor de desenvolvimento urbano, demonstrando que políticas consistentes podem transformar a música em um ativo estratégico para o posicionamento das cidades.
No caso do Rio de Janeiro, o cenário é marcado por contrastes. A cidade abriga uma das expressões musicais mais ricas do planeta, com gêneros como o samba, a bossa nova, o choro e o funk carioca compondo sua identidade musical. O Carnaval, por sua vez, é o evento cultural de maior projeção internacional, com forte valor simbólico e econômico. No entanto, a ausência de políticas contínuas e de infraestrutura adequada — sobretudo fora dos grandes eventos — compromete o aproveitamento estratégico dessa identidade musical como ativo cultural. Ainda assim, a vitalidade das dinâmicas musicais enraizadas nos territórios, que se manifesta em rodas de samba, blocos de rua e espaços improvisados, sustenta uma imagem globalmente reconhecida e admirada.
Infraestrutura e identidade: eixos complementares
A comparação revela que infraestrutura e identidade musical não são opostos. Pelo contrário: são eixos complementares no fortalecimento da marca de uma cidade. Montreal demonstra como a criação e a manutenção de uma infraestrutura pode potencializar o setor cultural. Já o Rio comprova que uma identidade musical forte é capaz de sustentar a reputação da cidade mesmo diante de limitações estruturais.
Para compreender melhor como diferentes cidades se posicionam entre esses dois eixos, propomos a matriz Infraestrutura Musical x Identidade Cultural Musical (Figura1). Essa ferramenta nos permite visualizar quatro perfis distintos de cidades musicais:
Os quatro quadrantes do branding musical de cidades
1) Cidades de Entretenimento (Alta infraestrutura + Baixa identidade). Locais com excelente estrutura para eventos, mas sem uma identidade musical enraizada.
Exemplo: Las Vegas — atrai grandes shows com uma infraestrutura robusta, mas não possui uma herança musical específica como parte da sua identidade cultural.
2) Cidades Hub da Música (Alta infraestrutura + Alta identidade). Metrópoles que combinam forte investimento em estrutura com uma herança musical consolidada.
Exemplo: Liverpool, com o legado dos Beatles, e Sevilha, com o flamenco, transformaram sua história musical em ativo turístico e cultural através de investimentos públicos de longo prazo.
3) Cidades com Raízes Musicais (Baixa infraestrutura + Alta identidade). Locais onde a música é parte do DNA cultural, mas falta apoio institucional e estrutura.
Exemplo: Rio de Janeiro — onde a música é um traço profundo da identidade cultural, mantido por manifestações populares autênticas e resilientes, mesmo com desafios estruturais.
4) Cidades Silenciosas (Baixa infraestrutura + Baixa identidade). Cidades que não investem em música — nem em estrutura, nem na construção de uma identidade cultural ligada à música.
Exemplo: Cidades sem tradição musical específica e que não possui infraestrutura suficiente para fomentar a existência de uma cena musical.
O papel das políticas públicas
A experiência de Montreal mostra que políticas públicas estruturadas para a cultura, desenvolvidas com continuidade e participação institucional pública e privada, podem transformar a música em vetor de desenvolvimento urbano. Planos de longo prazo, como o “Montréal, Métropole Culturelle”, articulam poder público, setor privado, artistas e universidades em torno de uma visão compartilhada, com metas revisadas periodicamente para manter a relevância e a adaptação ao contexto.
No Rio, a autenticidade cultural é um diferencial poderoso — mas precisa ser reconhecida como tal. Os grandes eventos, como o Carnaval e o Rock in Rio, são peças-chave na projeção internacional da cidade e na movimentação da economia criativa. No entanto, o fortalecimento da cena musical cotidiana — aquela que acontece nos pequenos palcos, nos territórios e nos circuitos locais e que ocupam o calendário entre os grandes eventos — ainda carece de políticas públicas contínuas e estruturadas.
Valorizar essa base, em articulação com os eventos de grande escala e com a iniciativa privada, permitiria ampliar o impacto da música como ativo estratégico. Isso implica investir em infraestrutura de médio porte, fomento à criação, circulação e formação, além de integrar cultura, turismo e desenvolvimento econômico de forma sistêmica.
Cidades que querem ser ouvidas
O investimento em música ao vivo não é apenas uma questão de agenda cultural. É uma escolha estratégica que impacta a forma como a cidade é percebida, vivida e lembrada. Isso vale tanto para capitais quanto para cidades de pequeno e médio porte que desejam valorizar seus recursos culturais locais.
A música expressa o que uma cidade é — e o que ela deseja projetar. Cidades que querem ser ouvidas precisam reconhecer o valor das suas próprias vozes. Isso exige tanto o fortalecimento da infraestrutura quanto o reconhecimento das expressões culturais existentes, integrando identidade e planejamento como dimensões complementares de uma estratégia eficaz de branding de cidades.