Você teria coragem de manipular um morcego? A maioria das pessoas provavelmente responderia não. No imaginário popular, esses animais são associados a lendas, vampiros e doenças. Mas e se eu te dissesse que, sem eles, nossas florestas seriam mais pobres, nossas lavouras mais vulneráveis e até o chocolate poderia se tornar mais caro?
Isso porque morcegos desempenham diversos papéis que auxiliam o equilíbrio dos ecossistemas, eles são fundamentais para a manutenção da biodiversidade tropical e do equilíbrio das florestas. Morcegos frugívoros atuam na dispersão de sementes, contribuindo para a regeneração de áreas degradadas e, por isso, considerados os “jardineiros noturnos” dos nossos biomas. Morcegos nectarívoros polinizam flores que se abrem no período noturno, como as agaves, como aquelas utilizadas na produção da tequila.
Além disso, morcegos são poderosos aliados no controle de insetos. Espécies insetívoras consomem toneladas de insetos por noite, ajudando a conter pragas agrícolas e vetores de doenças, como o mosquito da dengue. Um único morcego pode se alimentar de milhares de insetos em poucas horas, especialmente fêmeas grávidas e lactantes, que têm maior demanda energética. Com isso, contribuem para a redução do uso de pesticidas, cujos impactos podem ser nocivos tanto ao meio ambiente quanto à saúde humana.
Por serem sensíveis a alterações no ambiente, os morcegos também são indicadores ambientais importantes: a presença, ausência, ou quantidade de algumas espécies, diz muito sobre a saúde dos ecossistemas.
Atualmente, há quase 1.500 espécies de morcegos reconhecidas no mundo, mas bastou um único indivíduo para eu me apaixonar pelos morcegos. Foi ainda durante a graduação de Ciências Biológicas, na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em uma aula de campo, que me apaixonei por esse grupo fascinante e pelas múltiplas possibilidades de pesquisa que ele oferece.
Casas para morcegos: uma alternativa sustentável
Apesar de seu papel ecológico crucial, a presença de morcegos frequentemente causa conflitos com humanos, especialmente em áreas urbanas. Em algumas regiões é comum encontrar colônias de morcegos habitando os forros dos telhados. Na tentativa de afastá-los, proliferam-se na internet receitas caseiras de venenos a naftalina, passando por óleos essenciais, repelentes sonoros e até combustíveis. No entanto, esses métodos são ineficazes e a matança desses animais silvestres é crime, além de cruel, trazem consequências negativas para o ambiente.
Foi pensando nisso que, entre 2023 e 2024, com apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), por meio da Piper 3D, em parceria com o Laboratório de Ecologia de Mamíferos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), desenvolvemos um projeto para criar uma alternativa habitacional para os morcegos, garantindo a segurança deles e a satisfação dos moradores: a Bat House, ou casa de morcego.
Bat houses são abrigos artificiais que simulam os locais de descanso naturais desses mamíferos, como fendas em árvores e rochas, oferecendo proteção contra predadores e intempéries. Para funcionar, devem ser construídas com materiais não tratados, conter câmaras estreitas, cheiros conhecidos por esses animais, ser instaladas em locais com boa exposição solar 6 a 8 horas diárias e livres de vegetação próxima, que possa obstruir o voo ou facilitar ataques de predadores.
Nosso projeto consistiu em testar modelos internacionais ao contexto brasileiro, buscando sua eficácia nos nossos ambientes. Elaboramos um protocolo para remoção responsável de colônias de telhados, e instalamos oito unidades em residências no distrito de Lumiar, em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. O objetivo é promover uma convivência mais harmoniosa entre humanos e morcegos, reduzindo conflitos e preservando os serviços ecossistêmicos desses animais.
Um trabalho intenso de sensibilização foi realizado, buscando parceiros que quisessem adentrar nessa pesquisa, resolver um problema real que são os morcegos no telhado, e numa perspectiva de ciência-cidadã, criar parceiros engajados para a conservação do ambiente e dos morcegos.
Mas, nem tudo saiu como o planejado. Até o momento, os morcegos têm resistido a adotar as bat houses brasileiras. No exterior, a técnica é bem-sucedida, mas por aqui seguimos em busca de aprimoramentos. Ainda assim, seguimos investindo em alternativas criativas para mudar a percepção da maioria das pessoas. Enquanto em alguns países as pessoas atraem os morcegos para o redor das suas casas, aqui no Brasil ainda há resistência até para conhecê-los melhor.
Morcegos na praça: educação e ciência para todas as idades
Se há morcego, há boa conversa — e muita ciência! Acreditamos que a convivência começa com informação. Por isso, temos realizado atividades educativas em praças públicas, voltadas a públicos de todas as idades, do Rio de Janeiro ao Amapá. É o projeto Morcegos na Praça.
Já estivemos em Águas de Lindóia (SP), Juiz de Fora (MG), Pirenópolis (GO), Fortaleza (CE), Macapá (AP) e vários lugares no estado do Rio de Janeiro como o Parque Madureira, o Parque Natural Municipal da Prainha, o Parque Estadual do Cunhambebe, entre outros. Nessas ações, esclarecemos dúvidas da população, abordamos a importância ecológica dos morcegos e suas relações com a saúde pública, além de trazer curiosidades surpreendentes, como sobre o comportamento sexual.
Você sabia, por exemplo, que o morcego-hortelã-escuro (Eptesicus serotinus) possui um órgão reprodutivo que pode atingir até um quarto do tamanho do corpo, com uma ponta em formato de coração? Ou que o ato sexual mais longo registrado entre morcegos durou 13 horas? Há também espécies, como o Cynopterus sphinx, em que as fêmeas realizam sexo oral nos machos durante o coito — uma prática que pode ter funções ligadas à lubrificação, higiene ou prevenção de doenças.
Esses aspectos curiosos ajudam a aproximar as pessoas desses animais, mostrando que, além de essenciais, os morcegos também são fascinantes.
A saúde dos morcegos é também a nossa
Como parasitologista, também dedico parte do meu trabalho a investigar a saúde dos morcegos no Estado do Rio de Janeiro. Em nossas expedições, analisamos a presença de parasitas (como artrópodes,helmintos e protozoários, poluentes (como metais pesados e agrotóxicos) e sinais de doenças, e a presença de vírus como a raiva.
Nossas coletas acontecem em áreas na Ilha Grande, no Monumento Natural do Arquipélago das Ilhas Cagarrase a Reserva do Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu. Só nas Cagarras, a logística é uma aventura à parte: chegamos de barco, nadamos até as ilhas, carregando equipamentos em barris e cordas, e aproveitamos ao máximo as janelas climáticas. Se o mar virar, o vento aumentar ou chover, tudo precisa ser interrompido.
Coletamos cerca de 200 morcegos até agora, e a boa notícia é que nenhum deles testou positivo para o vírus da raiva. E sim, a raiva é transmitida pela saliva, e arranhões e mordidas podem veicular o vírus. Cuidado e informação são as melhores formas de prevenir acidentes.
Por isso, é fundamental que a população saiba como agir ao encontrar um morcego caído: não toque. O ideal é cobrir o animal com um balde e acionar o centro de zoonoses. Caso não consiga acesso rápido na sua cidade, pode-se usar uma toalha, pote ou pá para colocá-lo em local seguro, ao ar livre, protegido de animais domésticos.
Vale lembrar que morcegos também adoecem e morrem de raiva. Não são apenas vetores. Por isso, quando estão doentes são mais fáceis de serem encontrados.
E aquela velha dica de acender e apagar a luz para que ele vá embora? É ineficaz. O certo é manter as janelas bem abertas e fechar as portas dos cômodos, criando uma rota de saída, em caso de adentramento.
Seja como polinizadores, controladores de pragas, regeneradores florestais ou bioindicadores ambientais, os morcegos têm um papel insubstituível no equilíbrio da vida. Conhecê-los, protegê-los e aprender a conviver com eles é uma urgência e um convite à curiosidade científica.
A divulgação deste artigo contou com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (Capes).