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Estudo mostra como a busca digital por informações de saúde influencia a relação médico-paciente

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Estudo mostra como a busca digital por informações de saúde influencia a relação médico-paciente

Assistimos, em tempo real, às fronteiras entre a inovação e o cuidado em saúde se confundirem cada vez mais. Na minha prática clínica como residente de Psiquiatria no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, encontro com frequência pacientes que se autodiagnosticaram por meio de redes sociais e de inteligência artificial, além de pessoas fazendo psicoterapia tendo o ChatGPT como terapeuta.

Em pouco tempo de profissão, já testemunhei o surgimento da internet, dos dispositivos móveis, das redes sociais e agora da inteligência artificial — cada uma delas disruptiva à sua maneira. São cenários de alta complexidade e elevado grau de incerteza e não saber, que convidam à reflexão.

O avanço das discussões científicas e bioéticas está longe de acompanhar a velocidade das transformações na comunicação entre médico e paciente e no cuidado em saúde. Foi nesse contexto que, na companhia de colegas, realizei um estudo para compreender como essa nova forma de se relacionar com a informação em saúde — mediada pela internet — impacta essa relação, especialmente no campo da Psiquiatria.

O estudo que realizamos, Consultando o ‘Doutor Google’: como a busca digital por informações de saúde influencia a relação médico-paciente, procurou entender tanto as necessidades e percepções dos pacientes quanto às visões, dificuldades e temores dos médicos sobre o assunto. A proposta teve um olhar conciliatório, buscando compreender por quais caminhos é possível construir boas práticas na comunicação com os pacientes nos tempos atuais. O estudo foi publicado na revista Cadernos de Saúde Pública na edição de julho deste ano.

Retrato em branco e preto

Optamos por fazer uma fotografia do fenômeno — um retrato do comportamento atual em que médicos e pacientes convivem com uma quantidade crescente de informações digitais sobre saúde, nem sempre precisas ou confiáveis. Por isso, foi um estudo observacional e transversal.

Entrevistamos 200 pacientes do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, pertencentes a diferentes clínicas. Embora o hospital seja predominantemente público, a amostra revelou certos vieses: 80% dos pacientes tinham ensino médio completo ou superior — número maior que a média nacional — e quase 75% faziam uso contínuo de medicação. Um quarto dos participantes do estudo estava em tratamento para ansiedade ou depressão.

Constatamos que 87% dos entrevistados estavam conectados, e 85% deles buscavam informações sobre saúde online. Entre esses, mais de 90% recorriam ao Google. Fiquei muito impressionado ao descobrir que um quinto se informava apenas pelo primeiro link que aparecia. Redes sociais e aplicativos de mensagem também se mostraram fontes relevantes.

Fiquei impressionado também ao observar que mulheres e pessoas com maior escolaridade eram as que mais buscavam informações digitais sobre saúde. Já os portadores de doenças crônicas eram os que mais discutiam essas informações com seus médicos.

Desejo de participação

Aprendi muito com esse estudo. O trabalho mostrou que as razões para esse comportamento são variadas, mas um ponto em especial chamou minha atenção: o desejo desses pacientes de participar mais ativamente das decisões sobre a própria saúde — uma busca por autonomia, especialmente entre as mulheres. Além disso, apenas 24% dos entrevistados consideravam as informações da internet confiáveis, o que revela um alto grau de ceticismo.

Também ouvimos 92 médicos de diferentes especialidades, com predominância de profissionais do Sudeste e de áreas clínicas. Do ponto de vista dos médicos, os motivos mais comuns para que os pacientes tragam informações encontradas online são: pedir opinião sobre algo que leram (62%), solicitar exames (51%), sugerir tratamentos (33%) ou pedir mudança de medicação (13%).

Os resultados mostraram uma percepção ambivalente. Muitos médicos reconhecem que a busca digital pode ter efeitos positivos: ajuda o paciente a prevenir subdiagnósticos e subtratamentos e amplia sua compreensão sobre a própria condição de saúde. Porém, mais de 80% acreditam que as informações on-line podem gerar medo e preocupação desnecessários, e que os pacientes, em geral, não têm capacidade para avaliar criticamente o conteúdo ou entender como ele se aplica ao seu caso.

A visão predominante entre os médicos é que as informações disponíveis na internet não são confiáveis, podem piorar a adesão ao tratamento, aumentar custos com exames e terapias desnecessárias e comprometer o tempo de consulta. Embora 55% dos médicos considerem inadequadas as solicitações de pacientes baseadas em informações digitais, apenas 34% rejeitam completamente essas demandas. O restante atende parcial ou totalmente, muitas vezes de forma defensiva, diante do medo da judicialização crescente da medicina.

Bússola ética

As entrevistas mostraram que o antigo modelo paternalista, em que o médico detinha o saber e o paciente ocupava um papel passivo, está perdendo espaço para uma relação mais horizontal. Nela, o paciente assume maior protagonismo e deseja participar das decisões.

Todas essas constatações me impactaram profundamente e me colocaram diante de dilemas bioéticos complexos. Como promover a autonomia do paciente sem ampliar riscos? Como os profissionais de saúde podem fortalecer sua autoridade técnica e, ao mesmo tempo, acolher um paciente que chega munido de informações digitais, corretas ou não? A resposta talvez seja estabelecer uma comunicação empática e precisa: acolher o que o paciente traz, discutir com transparência e adaptar a linguagem sem recorrer a jargões técnicos. O desafio maior é equilibrar o saber técnico com o respeito aos valores e percepções do paciente.

Na pandemia de COVID-19, vimos o custo humano das informações falsas em saúde — vidas perdidas por decisões tomadas com base em conteúdos sem evidência. A lição que ficou é muito clara e não pode ser esquecida. Precisamos investir em literacia digital em saúde, na curadoria e difusão de informações seguras, tanto por parte das instituições quanto dos profissionais.

Fato é que a internet e suas ferramentas ocupam um lugar central em nossas vidas e nas relações de cuidado. O que nos resta é compreender essa realidade e refletir sobre como guiar nossas práticas com base no tripé da Bioética: não maleficência, beneficência e autonomia. Somente com um senso ético sólido poderemos navegar com segurança pelas transformações que unem saúde, tecnologia, comunicação e cuidado.


O The Conversation Brasil e a revista Cadernos de Saúde Pública/Reports in Public Health (CSP), que publicou o estudo que deu origem a este depoimento, fizeram uma parceria para trazer ao público artigos inéditos sobre estudos científicos, pesquisas originais e revisões críticas em diversas áreas da saúde coletiva. A revista CSP é publicada desde 1985 com suporte da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e reúne artigos científicos originais voltados à produção de conhecimento no campo da Saúde Coletiva e disciplinas afins.

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