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Etnoprimatologia: pesquisa investiga conhecimento tradicional de indígenas sobre primatas que habitam seu território

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Etnoprimatologia: pesquisa investiga conhecimento tradicional de indígenas sobre primatas que habitam seu território

O povo Paiter-Suruí possui uma cultura profundamente enraizada ao seu território: a Terra Indígena Sete de Setembro (TISS), localizada na fronteira dos estados de Rondônia e Mato Grosso, no sudoeste da Amazônia. O território — ou Paiterey Karah — é caracterizado por uma rica diversidade biológica, mas as pressões impostas pela ação humana na região têm gerado consequências socioculturais e territoriais que comprometem a continuidade do saber tradicional.

A fauna local inclui espécies de primatas — algumas atualmente ameaçadas de extinção devido ao avanço do desmatamento e à degradação ambiental. E os Paiter-Suruí mantêm em sua memória tradicional um vasto conhecimento sobre essa fauna, incluindo uma grande diversidade de animais úteis, que fazem parte de sua cultura. Entre eles, estão as 10 espécies de primatas neotropicais reconhecidas pelos indígenas em seu território, todas nomeadas em língua Paiter.

Dessas 10 espécies, cinco constam da Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN), um dos inventários mais detalhados do mundo sobre o estado de conservação mundial de várias espécies da fauna e da flora. Entre essas cinco, três são classificadas como extremamente raras segundo o conhecimento tradicional Paiter: Ateles chamek, Chiropotes albinasus e Pithecia mittermeieri.

Num esforço para promover a articulação entre o conhecimento tradicional indígena e abordagem científica, desenvolvi a pesquisa Primatas e o povo Paiter Suruí: Etnobiologia e Etnoconservação na Terra Indígena Sete de Setembro da Amazônia Brasileira, que investiga o conhecimento tradicional do povo Paiter-Suruí sobre os primatas não humanos que habitam o território. O estudo, desenvolvido durante meu mestrado no Museu Paraense Emílio Goeldi, constitui o primeiro esforço sistematizado no campo da etnoprimatologia junto ao povo Paiter-Suruí.

A Etnoprimatologia

A etnoprimatologia é o campo de estudo que investiga as intersecções entre humanos e primatas não humanos. Nesse contexto, o povo Paiter-Suruí detém um sistema próprio de saber tradicional sobre as espécies de primatas que habitam seu território.

Por seu caráter interdisciplinar e multifacetado, a etnoprimatologia permite integrar perspectivas biológicas e antropológicas na análise das relações entre humanos e primatas, ampliando a compreensão das dinâmicas ecológicas e culturais envolvidas.

Na minha pesquisa, a abordagem baseia-se na etnoprimatologia com ênfase em métodos qualitativos provenientes da antropologia biológica e cultural.

O estudo

O objetivo da pesquisa era descrever o conhecimento tradicional dos Paiter-Suruí acerca dos primatas presentes na Terra Indígena Sete de Setembro, compreendendo sua importância cultural, ecológica e seu uso — que inclui a alimentação, o artesanato, a medicina tradicional e a vocalização desses animais, que é utilizada para compreender a passagem do tempo.

A investigação seguiu uma abordagem interdisciplinar, que permitiu uma análise integrada das dimensões biológicas, ecológicas e socioculturais que moldam a relação entre humanos e primatas no território.

Guia de primatas do povo Paiter-Suruí, elaborado pelo autor, permite identificar em detalhes características físicas e de comportamentodas dez espécies de macacos encontrados na região.

O estudo foi desenvolvido entre 2021 e 2022, com visitas de campo a seis comunidades da TISS. Adotei uma metodologia qualitativa, fundamentada por uma revisão de trabalhos etnográficos e um levantamento de estudos etnoprimatológicos.

Utilizei técnicas diversas para a coleta de dados, como listas livres, entrevistas semiestruturadas coletivas, observação participante (em que o pesquisador interage e participa nas atividades da comunidade estudada, permitindo uma compreensão mais aprofundada da realidade) e registros audiovisuais.

As entrevistas foram realizadas com jovens e adultos, entre 20 e 80 anos, priorizando a escuta de anciãos, reconhecidos como principais detentores do conhecimento sobre primatas. Mas foram incluídos também mulheres e jovens caçadores, enriquecendo o conhecimento e as informações obtidas.

Por meio da técnica de listas livres, que permite aos participantes fornecer respostas abertas, sem restrições pré-definidas, identifiquei 10 espécies de primatas reconhecidas pelos Paiter-Suruí.

Os primatas do território

Das 10 espécies de primatas identificadas na Terra Indígena Sete de Setembro, três são tradicionalmente utilizadas como fonte de alimento, enquanto quatro possuem significados simbólicos que estão profundamente associados a elementos culturais, ecológicos e mitológicos da cosmologia Paiter.

Um exemplo é o macaco-da-noite-de-pescoço-vermelho, chamado em Paiter de Yaah. Segundo relatos dos mais velhos, essa criatura não é classificada entre os grupos de macacos conhecidos no território, pois é considerada um presságio. Sua vocalização ou um avistamento inesperado pelos Paiterey são interpretados como sinais preocupantes, associados à aproximação de inimigos ou à morte de alguém da comunidade.

Nas associações culturais entre indígenas e primatas, documentei, por exemplo, a prática cultural do cuidado e criação de filhotes por meninas, envolvendo espécies como Alouatta puruensis (guariba), Saimiri ustus (macaco-de-cheiro) e Mico nigriceps (sagui-de-cabeça-preta).

O sagui-de-cabeça-preta (Mico nigriceps) é um dos primatas que podem ser criados por meninas Paiter-Suruí, numa prática cultural de aprendizagem por imitação que consolida vínculos simbólicos e afetivos com a fauna local. Imagem disponibilizada pelo autor

Entre o povo Paiter-Suruí, é comum que meninas adolescentes criem filhotes de macacos caçados, assim como também outras espécies menores que não fazem parte do consumo alimentar. Essa prática, fortalecido pelos pais, constitui uma forma tradicional de socialização e aprendizagem cultural. Ao assumir o cuidado desses animais, as meninas desenvolvem competências afetivas, empáticas e práticas relacionadas à criação, que são consideradas fundamentais para o futuro exercício da maternidade.

Além de funcionar como um mecanismo de aprendizagem por imitação e responsabilidade, essa interação também consolida vínculos simbólicos e afetivos com a fauna local, especialmente com os primatas, reforçando valores culturais de pertencimento, reciprocidade e respeito à natureza. Tais práticas ilustram a interface entre processos de formação social, relação interespecífica e conhecimento ecológico tradicional.

Com base nos relatos das comunidades, identifiquei também o declínio populacional em algumas espécies de primatas. Entre elas, duas têm expressiva importância sociocultural: Yaah (Aotus nigriceps) e Arimẽ-Iter (Ateles chamek). Essa última recebeu atenção especial da pesquisa.

Arimẽ-Iter

O macaco-aranha-de-cara-preta (Ateles chamek), conhecido pelos Paiter como Arimẽ-Iter, consta da Lista Vermelha da IUCN como espécie ameaçada de extinção. Por ser uma espécie sagrada e de múltipla utilidade, sugiro em minha pesquisa que ela é uma espécie-chave cultural para o povo Paiter-Suruí.

Diferentes povos indígenas e comunidades possuem espécies biológicas de relevância cultural, denominadas Espécies-Chave Culturais. Uma espécie-chave cultural desempenha um papel significativo na comunidade, por suas múltiplas utilidades e funções. Está profundamente integrada ao modo de vida local, o que reflete a interdependência entre o grupo humano e o ambiente em que vive.

Entre os Paiter-Suruí, o macaco-aranha-de-cara-preta (Ateles chamek) se destaca por seus múltiplos usos e, possivelmente, atende aos critérios para ser reconhecido como uma Espécie-Chave Cultural.

O macaco-aranha-de-cara-preta (Ateles chamek), espécie ameaçada de extinção, é uma espécie sagrada e com múltiplos usos pelo povo Paiter-Suruí. Imagem disponibilizada pelo autor

A partir das informações coletadas em campo, identifiquei cinco formas de uso associadas a essa espécie pelos Paiter-Suruí.

  • Alimentação: A carne do Ateles chamek (Sobag) é consumida pelos Paiter-Suruí como uma importante fonte de proteína.

  • Consumo com preparo: A carne do Ateles chamek também é preparada em pratos tradicionais,sendo geralmente acompanhada de Mamé (biju feito com farinha de milho). Essa prática reforça os saberes culinários e alimentares transmitidos entre gerações, evidenciando a importância cultural, medicinal e nutrição da espécie para o povo Paiter-Suruí.

  • Artesanato: Os dentes do macaco-aranha são utilizados na confecção de adornos corporais (Sogap Arimẽ Ikaáp), como colares e pulseiras. Esses itens reforçam a conexão cultural com a fauna e refletem status ou participação em contextos rituais.

  • Medicina: A banha do Ateles chamek é usada como medicamento tradicional, especialmente na cicatrização de feridas (Ikawah). Esse uso é transmitido oralmente por anciãos e especialistas, integrando o conhecimento etnofarmacológico dos Paiter sobre a fauna local.

  • Conexão: Filhotes do macaco-aranha, quando encontrados órfãos ou a mãe é abatida na caça, podem ser criados por meninas adolescentes. Essa prática contribui para o aprendizado do cuidado e fortalece vínculos afetivos e relacionais entre humanos e primatas (Yatĩga), reforçando valores de reciprocidade com a natureza.

As utilidades desse primata, juntamente com o manejo ancestral das áreas onde ocorre, reforçam sua relevância como espécie-chave e preservação da identidade cultural do povo Paiter-Suruí.

Plano de Gestão Territorial e Ambiental

Como resposta aos desafios socioambientais que enfrentam, os Paiter vêm desenvolvendo uma política interna voltada à gestão territorial, à articulação política e ao etnodesenvolvimento, com o objetivo de preservar sua cultura e conhecimentos ancestrais.

Desse processo, nasceu o Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da Terra Indígena Sete de Setembro, implementado em 2000. Ele orienta ações de conservação, uso sustentável dos recursos naturais e valorização das práticas culturais.

Na minha pesquisa, examino o planejamento territorial da TISS, com ênfase na proteção dos primatas como componente estratégico das ações de conservação. Eles são fundamentais para o equilíbrio ecológico e a sustentabilidade sociocultural do território.

Das 10 espécies de primatas reconhecidas pelos Paiter, cinco estão ameaçadas, de acordo com a Lista Vermelha da IUCN. Apesar disso, não há ações contínuas específicas de proteção para essas espécies no atual escopo do PGTA. Mas defendo que o Plano de Gestão possa ser uma importante ferramenta de conservação de primatas do território.

Afinal, é essencial a implementação de medidas efetivas que garantam a conservação dessas etnoespécies, assegurando a coexistência entre biodiversidade e os saberes tradicionais do povo Paiter-Suruí.

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