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“Eu não respiro”: Como as análises de abordagens policiais podem ser usadas para prevenir gatilhos de ações violentas

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“Eu não respiro”: Como as análises de abordagens policiais podem ser usadas para prevenir gatilhos de ações violentas

A frase “Eu não respiro”, que ganhou o mundo após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, também encontra ecos em comunidades brasileiras. Frequentemente nos deparamos com notícias sobre a violência policial, tantas vezes repetidas que parecem ter se tornado parte da rotina.

Mas ainda sabemos pouco sobre como decisões violentas são tomadas durante uma abordagem. Quantas pessoas, por exemplo, morrem no Brasil em decorrência do uso do chamado mata-leão (golpe de asfixia pelo pescoço) comumente pela polícia? Não sabemos: esse dado sequer é registrado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O que se sabe é que a letalidade policial segue expressiva no país.

Muitas vezes, essas decisões são justificadas como “reação ao desacato” ou “autodefesa”. O antropólogo Kant de Lima, referência em estudos sobre segurança pública, já se perguntou: os policiais agem de forma violenta porque não sabem o que é correto ou porque, mesmo sabendo, escolhem agir de outra maneira?

Nossa pesquisa sugere uma terceira possibilidade: talvez estejamos ignorando o papel da linguagem, do corpo e da interação nesses momentos. A análise das interações entre policiais e cidadãos pode ajudar a entender por que essas decisões erradas são tomadas e, quem sabe, ajudar a evitá-las.

Estudos de linguagem e violência policial

Nos Estados Unidos, já existem pesquisas nessa direção. Um exemplo importante é o projeto Talking Justice: Identifying Interactional Mechanisms to Improve the Quality of Police-Civilian Encounters, financiado pela fundação WT Grant. desenvolvido pelos pesquisadores Raymond e Jones, visa ajudar a polícia a melhorar seus métodos de comunicação. Se treinados apenas para impor autoridade pela voz de comando, policiais tendem a reagir de forma mais dura diante da resistência verbal de um civil.

Protesto contra violência policial no Rio de Janeiro:no cartaz, a frase célebre do americano George Floyd, morto durante uma abordagem de rotina. Silvia Isquierdo / AP Photo

No Brasil, esse tipo de pesquisa enfrenta obstáculos. Ainda é incipiente o processo de implementação de câmeras instaladas em viaturas ou uniformes, o que limita o acesso a registros oficiais. O material disponível vem, em geral, de gravações feitas por cidadãos e postadas na internet, muitas vezes para denunciar condutas abusivas.

Há quatro anos, nosso grupo de pesquisa Discurso Interação e Prática Profissional, do Departamento de Letras da PUC-Rio, analisa justamente esse tipo de registro. Integrado ao Diretório de Grupo de Pesquisa do CNPq e com apoio também da FAPERJ, nosso grupo estuda a Linguística aplicada às profissões.

Estudos sobre a fala-em-interação em contextos profissionais vêm sendo vistos como necessários para a melhoria das práticas de médicos, professores, mediadores e até teleatendimentos, ou seja, tarefas que envolvem centralmente a linguagem. No caso da prática policial, não é diferente.

Utilizamos uma metodologia chamada Análise da Conversa Multimodal, que considera não apenas a fala, mas também gestos, posturas, olhares e a forma como os participantes lidam com o espaço físico. Essa abordagem mostra como certos gatilhos — verbais e não verbais — podem escalar rapidamente uma situação e levar a decisões erradas, como o uso desnecessário da força.

Um caso filmado no Rio

Um dos vídeos analisados foi postado no YouTube em 2013, com o título “Policial da UPP agredindo morador”. A gravação mostra três policiais e dois rapazes abordados na saída de um beco de uma comunidade carioca.

Logo no início, um policial identificado como Renan ordena: “vambora, vamo pra delegacia”. João, um dos jovens, responde: “não vai não”. Enquanto dá a ordem, Renan avança, tentando conter João, que dá passos para trás, evitando ser contido.

A recusa verbal, embora configure desacato, não representava risco à vida do policial. Ainda assim, Renan puxa o braço do rapaz para trás, pressiona seu pescoço e repete várias vezes: “não vai o quê?”. O gesto marca o início da aplicação do mata-leão, técnica que a própria Polícia Militar do Rio de Janeiro só admite em situações de risco extremo, o que não era o caso. O descontrole fica claro quando outro policial, Roberto, faz um apelo: “calma, calma, Renan”.

Cena do policial aplicando o golpe mata-leão. imagem de autor desconhecido, publicada no YouTube e no estudo da interação.

A decisão de recorrer à força não foi instantânea, mas construída passo a passo na interação. Além da luta corporal marcada por movimentos de contenção do policial e de resistência pelo abordado, inicia-se também uma luta verbal, expondo-o publicamente.

Nossa análise mostra que, mesmo estando ciente da gravação, o policial recorreu a uma técnica que pode ser letal, assumindo o risco de ser punido por isso. Por outro lado, ao realizar atos de bravata, o abordado correu o risco de perder sua vida.

Implicações para a formação policial

Nossos resultados apontam para uma questão aparentemente simples: o gatilho para uma ação violenta pode estar no aqui e agora da interação. Muitas vezes, policiais começam a preparar gestos de coerção antes mesmo de a situação exigir. Isso acontece porque entram em cena modelos culturais já incorporados à prática policial.

Como lembra o especialista em Linguística Forense, Itiel Dror, o elemento crucial para determinar uma ação está em como as pessoas percebem, interpretam e avaliam uma situação. Aprender a analisar a interação em tempo real — como palavras e gestos são entendidos de um lado e de outro — pode ajudar a reconhecer os gatilhos que levam a decisões equivocadas.

Por isso, acreditamos que parte desses erros poderia ser evitada se os policiais recebessem uma formação mínima sobre interação. Um curso baseado em videoanálise de casos reais pode tornar o policial mais reflexivo sobre sua prática e mais capaz de avaliar o que orienta sua tomada de decisão no calor da hora. Esse é um caminho prático para reduzir a escalada da violência, fortalecer a confiança social e repensar a delicada relação entre população e autoridade policial, olhando para a interação.

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